Capítulo VI - O Epitáfio e o Espetáculo / Parte 1: Edgar Visco

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Acordei um bom tempo depois com o sol brilhando em meu rosto. Lembrava-me de dormir onde estava e também das cenas imaginadas – a garota, o sangue –, o que era mais provável que fosse um sonho, claro – pelo menos era melhor pensar desta forma. Os fatos da noite passada encontravam-se aéreos, de difícil alcance em minha cabeça, que doía, encostada na quente lataria do carro.

Coloquei-me de pé, sentindo-me envergonhado, e pode colocar ênfase na palavra "envergonhado"; um pouco aliviado, porém, por existir este sentimento – houve um tempo em que eu não me importaria de acordar em tal estado. A vergonha mostrava que eu não era mais o mesmo de anos passados, naquela época, vergonhoso mesmo seria despertar sozinho ou sem um trago ao alcance. Notei a poça – seca – de vômito próxima aos meus pés; o gosto tomou meu paladar. Bati nas calças, tirando a sujeira que se assentara sobre mim pela noite, mantendo os olhos atentos a qualquer movimento. Saber que ninguém tivesse me visto em tal estado me acalmaria – a idade traz uma maior preocupação com sua imagem, uma necessidade de se sentir respeitado. Decidi, ao fim, que ninguém havia me visto da mesma forma que se decide os números marcados em um cartão de loteria: talvez alguns dias depois alguém me decepcionasse com a verdade, mas não naquele momento.

Abri a porta do carro, adentrando-o.

O celular estava sobre o banco. Umas ligações de números não salvos apontavam na tela, mas nada que importasse. Existia no mundo apenas um número para o qual era importante ligar naquele momento.

Uma vez... duas vezes... três vezes... Qual o limite da esperança num caso como o meu? Tentei ligar vinte vezes tentei até aceitar a realidade. Ela não atenderia.

Se não podia tê-la, não desejava mais nada. A despeito de querer acoimar todo o resto, sabia de quem era a culpa; sabia para quem apontar o dedo naquele maldito instante, e este fato doía.

Como um adolescente que chora pela primeira paixão, fui para casa, joguei-me na cama e dormi. Não sabia e não tinha o mínimo interesse em nada mais que tivesse acontecido na noite passada. Caso o assassino tivesse preso, morto, livre... Foda-se! Não importava. Nada importava. Aliás, uma coisa importava; alguém. Linda...

Liberte-seOnde as histórias ganham vida. Descobre agora