Capítulo I - Ligados por Sangue / Parte 10: Edgar Visco

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Quando eu finalmente consegui fechar os olhos por um momento, o dez vezes amaldiçoado despertador tocou. Eu não sabia ao certo se havia ou não dormido, e, se sim, não saberia dizer quanto tempo.

6:31, os números em luz vermelha acusavam; a manhã começava a invadir o quarto. Passei a mão sobre o dispositivo, ansiando por algum bendito silêncio. Os olhos queimavam, a respiração pesava e o pescoço doía; que ótima maneira de começar o dia. A última coisa que eu queria era pôr-me de pé, mas como a maioria dos homens modernos, escravos dos ponteiros, não poderia me dar esse luxo. Com muito esforço - e desgosto -, apoiei-me em meus braços, sentando-me e afastando o edredom. Não me lembrava a última vez que havia acordado num estado deplorável como aquele.

Protagonizando desajeitados e lentos passos, segui para o banheiro.

Passei água em meu rosto, como de hábito, afastando o sono, mas nada de habitual aconteceu no momento seguinte, quando recuei assustado, escorando-me na parede. As gotas de água caíam ao chão e, com os olhos vidrados e os braços esticados, aproximei-me do espelho. Poderia jurar que havia me visto de cabelos longos, tocando os ombros, e olhos firmes, sorrindo. O sono estava me maltratando.

Deparar-me com tal imagem, porém, fez-me refletir sobre como eu havia mudado. Tudo o que eu fora, contrastando-se com tudo que eu era. O tempo passara, isso era tão certo quanto irreversível e imutável. Algumas rugas já existiam em meu rosto, malditas entradas em minhas têmporas e, mesmo assim, olhando-me nos olhos pude sentir a juventude dentro de mim. Será que eu teria aceitado o que havia me tornado? Será que alguém neste mundo aceitaria sua versão adulta ao se deparar com ela na rua? Não sei dizer ao certo quando, mas, em algum momento, parece que todos passamos a seguir um caminho que não nos leva ao futuro que uma vez sonhamos - aquele que jurávamos, antes de adormecermos, que se concretizaria. Será que o jovem sonhador que todos nós fomos nos perdoariam pelas pessoas que nos tornamos?

Droga... Em alguns momentos o espelho pode ser cruel. Principalmente quando passado e presente se cruzam, formando um tribunal em nossa cabeça, julgando nossos traços e nossas escolhas. Esses pensamentos fizeram com que eu virasse o rosto, um pouco envergonhado comigo mesmo. Porém, ao desviar o olhar, notei uma leve marca arroxeada em meu pescoço.

Linda...

A corte em meus pensamentos foi desfeita, declarando o vencedor. Sorri. Aquela mulher fazia tudo valer a pena; perante ela, todo o mais tornava-se tão fútil. E que se dane os cabelos longos, e que se dane o passado! Balancei a cabeça, afastando os pequenos devaneios que persistiam, e voltei aos meus hábitos diários.

Já vestido, desci as escadas. Não pude evitar olhar para o local onde o bilhete se encontrava, mas não ousei abrir aquela gaveta. Peguei o celular e a carteira e segui para os sofás, onde calcei meus sapatos e vesti meu casaco.

Voltei a olhar em direção à mesinha, parando por um instante frente à porta, mas não a abri; trataria daquilo em outro momento, caso precisasse. Volto a repetir que é muito mais fácil simplesmente ignorar os problemas.

Já passava das sete horas.

***

O quão frustrante é tentar manter o foco, insistentemente, quando os olhos ardentes e as pálpebras, pesadas, insistem em se fechar? Tornava-se cada vez mais difícil manter os olhos abertos, encarando aquela imensa pilha de papéis; meu organismo cobrava o descanso pelo sono perdido.

Como de costume, recorri ao café, na tentativa de manter-me desperto. A bebida descia quente e, mesmo que por um curto período de tempo, o plano parecia funcionar. E pela manhã o ritual se repetiu algumas vezes: o sono se aproximava, encaminhava-me para a cafeteria e servia-me de outro copo. A pilha de papéis, porém, não diminuía; despendera mais tempo tentando manter o foco que de fato o utilizando.

Esfreguei os olhos. Precisava descansar; não haveria cafeína suficiente no mundo para manter-me acordado naquele estado.

Enquanto ia em busca da tão adorada bebida, mal notei a hora passar. Quando observei o relógio no computador, notei que aproximava-se o intervalo para o almoço. Não sentia fome, mas em compensação o cansaço me consumia. Descansar era minha prioridade. Sutilmente deitei em minha mesa, debruçando-me sobre meus braços, afastando um pouco o trabalho, como um aluno que não consegue mais manter a compostura.

As pessoas no escritório mal podiam acreditar no que viam; não era comum as pessoas cederem ao cansaço naquele local, o motivo revelar-se-ia em alguns momentos quando, passado um tempo de imperturbado sono, alguém tocou meu ombro.

"Ei", a irritante voz dizia. Sem querer fazer acusações precipitadas, mas qual voz não se torna irritante quando você está tentando cochilar? "Edgar! Por Deus, o que está fazendo?". Dito o meu nome, olhei em direção à voz, ainda sonolento. Formava--se a imagem de um rapaz bem trajado, terno em tom escuro, quase reluzente, cabelos loiros penteados para trás e uma pele que há muito não tomava sol. E os infelizes olhos continuavam a me encarar.

Charlie.

Sobrinho favorito de meu patrão, Charles assinava com orgulho seu sobrenome - Keller - que, pelo que eu soube, herdara de seu pai. Não medirei palavras para descrevê-lo: Charles Keller era um filho-da-puta mimado e insolente. Agia como o mais imbecil estereótipo de um veterano universitário, tentando se impor sobre os outros para sentir-se melhor sobre si mesmo e gerando mal-estar em todos naquele lugar.

"Agora não, meu caro Charles", respondi. "Estou no meu intervalo de almoço e tive uma longa noite."

"Que vá almoçar, então, por Deus! Não é esta a ideologia que pregamos neste lugar. E este casaco...", aproximou-se, "É o mesmo de ontem? Por Deus, Edgar. É se esforçar demais passar uma boa aparência no seu local de trabalho? Não sei como você consegue trepar com aquela mulher deliciosa com quem sai...", sorriu. "Ela não deve ter conhecido um homem de verdade."

Talvez você pense que neste momento eu deveria ter me levantando, impondo-me sobre o moleque, colocando-o em seu lugar e defendendo tanto a minha honra, quanto a de minha amada. Mas há muito eu não me importava com qualquer coisa que saísse da boca daquele infeliz, já conhecia o tipo, e, ademais, não era mais de arrumar problemas.

"Tudo bem, Charles", falei e peguei a pilha de papéis. "Voltei ao trabalho. Isso te faz feliz?", a ironia era grande em meu sorriso. "Pode voltar aos seus importantes afazeres agora."

"A nobreza do meu tio o faz cego para o assistencialismo que ele pratica...", disse, virando-se. "Um funcionário sem diploma", debochou, voltando o olhar para mim. "Mas deixarei ele ciente de sua atitude desleixada, Edgar."

"Tudo bem. Até mais, Charles", disse, batendo o montante de folhas contra a mesa.O melhor a fazer era evitar delongar aquela conversa. Adianta discutir com pessoas assim? Na minha experiência, ou você se mantém calado, ou está preparado para a discussão tornar-se mais física. Um par de anos fizeram-me passar da segunda para a primeira opção.

O agradável diálogo serviu para afastar meu sono. Os olhos já não ardiam e pude perceber, voltando os olhos rapidamente ao relógio, que meu intervalo já havia passado da metade. Levantei-me, encaminhando-me para a cafeteria do próprio escritório e preparei-me um sanduíche com o que havia no local.

Pela tarde, consegui focar-me no trabalho; a rotina capturara-me de novo, envolvendo-me ao longo do dia. Nada como a rotina para fazer esquecer os problemas, a ilusão de que tudo está normal. Em nenhum momento pensei no bilhete que adormecia em minha sala.

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