Capítulo I - Ligados por Sangue / Parte 5: George Hoff

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Circodema havia se tornado uma cidade diferente, melhor, nos últimos quatorze meses. A cidade havia passado por algumas mudanças políticas, drásticas até certo ponto, mas mostraram-se eficazes ao meu ver. Os políticos uniram-se e votaram a favor da pena de morte. Algumas pessoas, principalmente jovens com a crença de que o mundo é o lugar bom e as pessoas são boas, mostraram-se contra, julgaram desumano, não achavam-se no direito de julgar quem vive e quem morre. A pena, porém, aplicava-se apenas para assassinatos , o que, na minha opinião, colocava o discurso deles por terra. Uma pessoa poderia decidir quem morreria, mas a justiça não? Bobagem, eu digo. Sentado na minha mesa após a cena que havia visto pela manhã eu tinha a certeza de que fizeram a melhor escolha. Uma pessoa que faz algo como aquilo não merecia mesmo viver. No mais, o governo do país havia aprovado uma ementa que proibia a existência de manicômios , sanatórios, hospícios, ou qualquer que fosse o nome daqueles lugares para onde mandavam os loucos, e isso acalmou um pouco o ânimo da juventude, julgaram isso uma vitória em prol da humanidade.

Antes matavam de uma forma em que se ridicularizava o valor da vida. Um idiota ofendia outro em alguma espelunca e bang! Se resistisse a algum assalto, matavam antes e roubavam a carteira depois; afora brigas no trânsito, crimes passionais... Após a aprovação da lei, no entanto, passávamos meses sem reportarmos um assassinato sequer, o que provou sua eficácia. Contrariando os jovens, porém, posso dizer que algumas pessoas que foram presas revelaram-se ex-residentes das antigas casas para pessoas com problemas mentais.

No mais, a cidade seguia pacata e tranquila até aquele maldito dia.

***

Estava sentado em minha mesa observando um retrato de minha família: eu, minha mulher, Gisele, e meu filho, Lucas, que já estava na faculdade – o tempo passa rápido. Havia alguns anos que eu trabalhava do lado certo da lei. Não havia visto de tudo, mas com certeza já havia visto demais... E, mesmo com o tempo, eu não conseguia aceitar certas coisas, como um corpo nu jogado em meio a rua para todos verem. Não era uma atitude de um fora da lei, era algo que apenas um covarde lunático faria.

A porta rangeu, o que me fez voltar os olhos para sua direção.

"Senhor, estou interrompendo algo?"

"Nada que não pudesse ser interrompido", endireitei-me na cadeira. "Entre", convidei e assim ele o fez. "Alguma novidade?"

"O homem foi identificado pela mulher."

"Pobre senhora...", imaginei minha Gisele deparando-se comigo naquele estado.

Ele se calou por um momento, talvez esperando que eu continuasse a falar e, vendo que não, puxou as palavras ele mesmo. "Ela veio até aqui, estava com um olho roxo, mas desviou o assunto quando perguntei a respeito. Após identificá-lo começou a chorar, inconsolável. Me contou que ele foi demitido na manhã de ontem e, após discutirem, saiu para beber. Ficou falando e falando sobre o quão bom marido ele sempre foi. Seu nome era John Neville. Disse-me que não se preocupava, pois não era raro ele sair da maneira que saiu... não esperava encontrar o marido em tal situação."

"Nenhuma mulher espera, nem mesmo as esposas dos piores homens. Conseguiu alguma informação sobre onde ele bebia?"

"A sra. Neville disse-me o local que ele mais frequentava. Fui até lá pessoalmente." Ele deu um passo à frente, "O lugar era o mais simples que se pode imaginar, alguns homens sentados nas poucas mesas, algumas pessoas no balcão, e esses provavelmente não reconheceriam nem a si mesmos. Troquei algumas palavras com o dono, Roger. No começo se mostrou um pouco inquieto com minha presença, mas assim que soube o motivo foi bem franco e aberto comigo. Confirmou que ele esteve lá ontem, mas disse que não saberia dizer por quanto tempo, ou o que aconteceu. Não o culpo", completou, "eu mesmo não saberia diferenciar ninguém naquele lugar."

Afaguei meu bigode com o polegar e o indicador, estressando-me.

"E a empresa? Você disse que ele foi demitido, certo?"

"Sim. Uma pequena empresa de laticínios, Cemilk. A esposa da vítima confessou que ele não era muito bom em manter empregos. Mas, nesse caso, a empresa estava fadada ao fracasso devido à invasão das grandes companhias. A demissão foi de quase toda linha de produção. O sr. Stanley, presidente e dono, beira a falência. Posso estar errado, mas não vejo qualquer ligação com o assassinato, senhor."

Assenti, mas o alertei dizendo que seria bom manter o olho aberto. Ele concordou.

"Alguma notícia da necropsia?", continuei.

Ele parou por um momento e sorriu. Arqueei as sobrancelhas, questionando-me se havia perdido algo. Ele pigarreou e começou a falar, retirando o sorriso: "Rachel não encontrou nada que não soubéssemos pela manhã. E senhor", emendou, "alguns repórteres já aguardam algum pronunciamento sobre o caso. Desde a aprovação daquela lei, assassinatos são certeza de manchetes."

"Eles não se cansam de noticiar tanta desgraça? Diga a eles que esperem por um momento, pois preciso de um café", coloquei-me de pé e levei a mão involuntariamente ao peito, onde um certo desconforto havia surgido pela manhã.

"Tudo bem, senhor."

"Momentos assim me fazem ter saudade de trabalhar nas ruas. Quando você pensa em se tornar um policial, não se imagina sentado atrás de uma mesa esperando alguém te informar o que está acontecendo...", desabafei com meu subalterno.

"Não haveria melhor homem para se sentar nessa mesa, senhor."

Sorri... Senhor, senhor, quantas vezes ouço essa palavra ao longo do dia?

"Um dia você me entenderá, Paul. Quando se referirem a você apenas como senhor, você me entenderá. Mas...", pontuei, enquanto ele abria a porta, "sigamos em frente", o desconforto continuava, "sigamos em frente."

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