Capítulo I: Ligados por Sangue / Parte 4: Paul Thompson

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Pela manhã recebemos muitas ligações apontando um corpo jogado nu no meio da rua nos arredores do centro da cidade. Circodema já estava há algum tempo sem nenhum tipo de assassinato, o que ampliou o alarde causado pela morte.

A fita amarela com os dizeres "Faixa policial, não ultrapasse." cercava o local que o corpo estava. O cheiro do local era horrível, o fétido odor da morte somado às poças de vômito dos que não aguentavam a cena. Mas isso não era um fato que afastava os curiosos, aglomerados no local, tentando ver com os próprios olhos o que ouviram em conversas alheias pelas ruas.

A desgraça atrai as pessoas, posso dizer isso. O bairro em que cresci não era um exemplo de segurança, e os tempos eram outros; vez ou outra um jovem, com o mesmo tom negro na pele que eu, aparecia morto pelas ruas. Tachados de bandidos, traficantes, ladrões; aos meus olhos eram apenas vítimas. Sofriam o que muitas vezes sofri, seja por não possuir um cabelo julgado bom, ou a cor certa. O mundo é suspenso por pilares de injustiça. Passada uma década, os tempos mudaram, melhoraram um pouco, eu diria. Tornei-me policial na tentativa de tornar o mundo melhor, ou pelo menos tornar Circodema uma cidade melhor. Vestindo a farda azul—marinho obtenho mais respeito, mas sei que ainda há os olhos que me julgam quando observam-me por trás, vozes tecendo comentários que não poderiam ser ditos para um oficial da lei.

Um grupo de três policiais vigiava a faixa, não deixando ninguém cruzá-la. A ruiva Rachel Lull, junto com sua equipe, buscava vestígios para análise – sangue, cabelos, objetos, digitais, qualquer coisa que nos levasse ao desumano que fizera aquilo.

Que começo de dia.

Tornando os olhos para faixa novamente, observei uma agitação. Os policiais deram passagem para quem vinha. A pessoa era George Hoff, o tenente do Segundo Distrito Policial da Cidade de Circodema, onde eu servia. Um bom homem, justo. Já passava de meio século de existência, mas ainda mantinha seu bigode escuro.

Ele veio em minha direção. Vestia seu tradicional terno cor de marfim, com uma gravata marrom.

"Paul."

"Senhor."

"O que temos aqui, policial?", um certo asco brotou em seu rosto ao ver o corpo. Não o culpo.

Comecei a falar, mas fui interrompido por uma voz feminina, Rachel. "Uma cena muito estranha, isso eu posso afirmar", ela disse.

"Rachel...", cumprimentei-a. Ela retirou as luvas de látex, retribuindo nossos olhares. Ninguém julgaria que uma pessoa de traços tão delicados trabalharia com análises de sangue, drogas e em cenas de roubo e coisas do tipo. Mas ela era muito boa no que fazia.

"Meus ouvidos são seus, Rachel", o tenente disse.

"Um homem entre trinta e quarenta anos, eu diria. Há marcas de corda nos pulsos, tornozelo e barriga", gesticulava seus pensamentos, revezando os olhares entre nós. "O antebraço esquerdo está destruído. Foi partido em dois e a parte do pulso esmagada por algum tipo de pressão", apontou para o homem, "hematomas no rosto, um estranho furo na coxa direita, Deus...", ela desviou o olhar por um momento.

"O ser humano sempre consegue me surpreender", George disse.

"Mais do que isso, apenas após a necropsia", Rachel concluiu.

"Entendo", respondeu George virando-se para mim. "Paul."

"Senhor."

"Peça para que tirem este homem daqui", olhou em volta, "o quanto antes, se possível."

"Algo mais que eu possa fazer, senhor?"

"Temos algum nome? Alguma testemunha?"

"O homem não portava documentos e se alguém testemunhou, preferiu não se manifestar", lamentei informá-lo. "Pelo menos por hora. Estamos envolvidos e investigando, senhor."

"Quanto tempo passamos sem um assassinato...", refletiu. "O dia será longo, policial, como deve saber. Eu tenho que me retirar agora, mas me avise se alguma coisa aparecer."

"Claro, senhor."

"Você também, Rachel. Me mantenha informado."

"Claro, George, deixe comigo."

Ele voltou pelo mesmo caminho, passando a fita e pedindo passagem às pessoas. Massageava o peito enquanto andava, devia estar sentindo algum desconforto na área.

Voltei para dar a ordem de retirada do corpo para os homens e, ao olhar para o lado meio distraído, meus olhos se encontraram com a da graciosa ruiva da perícia. Ela, sorriu acenando. Retornei o sorriso, torcendo para que ela não tenha notado que me deixara sem graça. Como era linda.

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