Capítulo IV - Charlie? / Parte 10: Edgar Visco

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Tinha a certeza de que minha cabeça explodiria a qualquer instante. Àquela altura do campeonato, poderiam aproveitar o ritmo fúnebre e já preparar uma outra cova para mim.

O Jardim do Descanso era o cemitério da elite circodemense. Sendo um sobrinho de Eric Keller, não poderia ser diferente. Um belo lugar localizado no alto de um dos muitos morros formados nos arredores de Circodema, repleto de árvores e com os túmulos mais bem trabalhados que pode-se imaginar: santos, cruzes, mármores, ouro... uma clara disputa das grandes famílias da cidade. Qual família prestava maiores homenagens aos seus antepassados? Quem empilharia mais riquezas sobre seus nobres falecidos? Tais coisas importavam para essas pessoas.

Havia muitos carros nos arredores do Jardim do Descanso, e meu sedã estava entre os mais singelos.

Chegamos à entrada. Um bem trabalhado arco repleto de flores vermelhas e com anjos talhados em mármore nas pontas anunciava o nome do local. O clima não era diferente de outros lugares onde a homenageada é a senhora morte; a sensação de vazio apoderou-se de nós no momento que ultrapassamos o portão. Os mortos buscam descanso, sentem-se incomodados quando tantas pessoas caminham por entre eles. O que havia de diferente dos outros cemitérios, além do citado, era o fato de todos os túmulos estarem sempre cobertos com as mais diversas flores. Por meio dos funcionários, a empresa responsável garantia isso. A família não precisava se dar ao luxo de deixar homenagens para seus queridos falecidos; a administração se encarregava para que todos pensassem que os seus fiéis clientes residentes do subsolo nunca fossem esquecidos. As visitas eram raras, porém. Os mortos agradeciam.

Após um tempo andando pela grama, ainda sentindo minha cabeça um pouco – efeito do lugar –, uma aglomeração de pessoas fez-se visível aos nossos olhos. Não pude deixar de notar o grande número de pessoas que choravam ao redor do caixão, ainda não sepultado. Verdadeiros amigos? Oportunistas? Obrigação? Creio que não era hora para tais devaneios; um homem aprende a respeitar a dor da perda com o passar dos anos.

Algumas rosas eram jogadas junto ao caixão. Uma mulher, que deveria ser a mãe de Charlie, estava beirando à loucura, em meio a berros e gritos que constrangiam alguns e assustavam outros. "MEU FILHINHO! CHARLIEEE! MEU QUERIDO FILHINHO! POR QUÊ, MEU DEUS? POR QUÊ??" O que pode-se dizer perante tal cena? Abaixei o rosto, desviando o olhar.

"Edgar...", senti um toque no ombro.

"Ronne."

"Linda." Ela tentou formar um sorriso em resposta; estava abalada com toda a cena.

"Como estão as coisas, Ronne?", perguntei.

"Tudo bem com a minha família, mas fora isso...", olhou ao redor, "há rumores sobre a morte de Charlie, Edgar. O estado que ele se encontrava, o lugar...", virou o rosto. "Ouvi dizer que está carregando um distintivo novamente", desconversou.

"Meio que não carrego distintivo. O tenente George veio pedir minha ajuda no dia que me demiti...", alonguei a última sílaba, lembrando-me da maldita briga com Charlie, o mesmo Charlie que estava sendo sepultado. Alguns olhos se desviavam para mim. Acusando-me? Será que pensavam que eu o havia matado? As pessoas pensam muitas coisas. Merda. A verdade é que eu tinha mesmo minha parcela de culpa. Minha cabeça voltava a latejar forte e alguém vinha em minha direção, trajando o terno mais elegante de todos os presentes, como não poderia ser diferente. Eric. "Me desculpe, Ronne", cumprimentei-o. "Com sua licença." Postei a mão sobre o ombro de Linda, sinalizando para que aguardasse, e fui ao encontro de Eric Keller.

Há alguns metros o padre dizia algumas de suas preces e outras tantas pessoas continuavam a lançar rosas brancas.

"MEU FILHINHO!! NÃÃÃO!!! POR QUÊ??!" O que pode ser pior do que a dor de uma mãe perder seu filho?

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