Capítulo VIII - Liberte-se / Parte 3: James Morris

1.7K 155 12
                                    

"Aqui!", gritei na rua de minha casa.

O taxista me olhou como que se perguntasse o que infernos eu iria fazer naquele lugar riscado do mapa da cidade. "Você tem certeza mesmo de que está bem, garoto?", encostava o carro.

"Estou bem!" Entreguei a ele um maço de notas. "Fique com o troco e obrigado." Abri a porta e desci.

O homem nada disse. Como muitos daqueles que recebem mais do que deveriam, apenas seguiu em silêncio. Como disse: não queria problemas. Deixe os problemas para os mais jovens!

Como era normal naquela rua, ninguém à vista. Passo a passo – minhas pernas ainda estavam cansadas – segui para meu asilo que insistia em chamar de casa. O braço doía como se estivesse queimando. O sangue trazia-me uma sensação de fraqueza: eu não passava de um reles mortal.

Adentrei o lugar, seguindo pelo corredor com o braço bom apoiado na parede – as pernas, exaustas, voltavam a doer. Desabotoei a camisa ao chegar no quarto e segui para o banheiro. No espelho pude perceber que a ferida estava pior do que eu esperava.

"Porra...".

A bala não ficara alojada no lugar, mas o tiro foi mais do que apenas de raspão. Olhei para o chão do azulejado cômodo e lá se encontrava o álcool que usara para lavar um certo quarto dias antes. Desviei a vista por um segundo – não seria uma sensação agradável, mas sabia que tinha que ser feito. Era o que se fazia para impedir infecções, afinal. Todos os filmes mostravam isso.

Peguei a garrafa e a abri. Respirei fundo... Respirei muito fundo, como um homem indeciso apontando a arma contra a própria cabeça. A mão fazia a garrafa tremer. Como, no fim das contas, não adianta tentar evitar o inevitável, joguei o álcool sobre o ferimento.

Apertei os dentes com força – caso minha língua estivesse no caminho teria sido partida em dois. Era como uma espada fervente penetrando a carne. Lágrimas caíram de meus olhos e fui forçado a parar. Era o suficiente. Tinha que ser.

Voltei para o quarto e, trêmulo de dor, apoiei-me no guarda-roupas, puxando uma camiseta. Pensei em rasgá-la, mas não teria forças; apenas a amarrei em meu braço, como uma espécie de curativo. Sentei-me na cama, peguei algumas drágeas cujas cartelas estavam no chão e as tomei de maneira, no mínimo, displicente. Talvez a dor passasse. Pelo amor de Deus, que passe!

Deitei-me. E desmaiei.

***

Um... Dois... Três.

Imergi-me então em um outro mundo. Sonhos, muitas das vezes, mostram-se brilhantes máquinas do tempo. Quer ver o futuro? Reviver o passado? Tire um cochilo, meu chapa!

***

"Jane...". Sua pele confundia-se com a neve. Dançava em meio a um salão iluminado por uma luz celestial. Suas mechas vermelhas reluziam como fogo. Olhando ao redor, pude notar que o cenário era o interior de um imenso castelo. "Jane!", gritei. Não podia acreditar que ela estava diante dos meus olhos.

Ela parou de girar. Seus lindos cabelos estavam presos e ela trajava um delicado vestido azul de babado. Um batom vermelho cobria seus sensíveis lábios. Deus... Ela olhou e sorriu em minha direção. Eu trajava um bonito terno negro, sapatos engraxados em tom brilhante e uma gravata de borboleta preta em torno do meu colarinho branco. Ela me convidava com um balançar de suas mãos. O pingente em forma de lagarto – o artefato que ela mais apreciava no universo e nunca retirava de seu pescoço – brilhava tanto quanto seus olhos e seu sorriso, encostando-se em sua pele, fazendo-me desejar ser ele.

Ela voltou a girar. Um toque de caixinha musical começava a envolver o ambiente – delicado e macabro, ameaçando parar a qualquer momento.

Tentei ir ao seu encontro, mas deparei-me com um problema: minhas pernas não se moviam. Tudo o que eu mais queria – tudo o que mais desejei! – em minha vida, tudo pelo que de fato valia a pena respirar, estava dançando em minha frente, celestial como jamais esteve... Mas minhas pernas não se moviam!!!!!

"JAAAAAAANE!". Lágrimas percorriam meu rosto à medida que tentava de maneira desesperadora me mover, como alguém tentando fugir do próprio coma. – "JAAAAAANE! PELO AMOR DE DEUS!". A angústia tornava-se palpável, enforcava-me com suas mãos invisíveis.

Fui ao encontro do chão na tentativa de me mover e, primeiro de joelhos e depois, merda, que se foda, deitado, tentava rastejar. Com as unhas, buscava o impulso no chão... Mas eu não conseguia me mover!

"JAAAAAAAAANE!". Eu poderia afogar em minhas próprias lágrimas. Sorridente, ela continuava a dançar. O toque de piano pendulava entre melancólico e aterrorizante – o ápice de um melodrama hollywoodiano. "JAAAAAAAAAAAAANE!". As pontas dos meus dedos já estavam roídas, banhadas em sangue, mas eu não me movia. "Pelo amor de Deus!". Sentia meus ossos tocarem o chão, mas não podia desistir. Como poderia? Por Deus! Ela estava em minha frente! Como poderia desistir? "Pelo... amor... de... Deus..."

Uma sombra surgiu atrás de minha amada que dançava em meio ao vazio salão do castelo. Algo se movia em sua direção. Alguma coisa negra e maligna se movia na direção daquela que significava mais do que a minha própria vida. As primeiras falanges já não estavam ligadas às minhas mãos... Mas... Deus! DEUS! Eu não me movia!

POR QUÊ?

"JAAAAAAAAAAAAAANE!", minha garganta ardia, mas eu não me importava; poderia romper minhas cordas vocais que ainda gritaria. "SAIA DAÍ, JAAAAAAANE! PELO AMOR DE DEUS, ME OUÇA!". Dois pontos de luz guiavam a sombra, cada vez mais rápida, mas ela não percebia... Não notava!!! "DE NOVO NÃO!" Minhas últimas falanges tocavam o chão. "NÃÃÃÃO!!!" Reviver o seu maior pesadelo... Ver a coisa que você mais ama ser retirada de você... Dói... Dói muito! As lágrimas jorravam e meus dedos já inexistiam... Mas eu não conseguia me mover. "JAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAANE!"

Ela soltou um último grito e a escuridão a engoliu. Pude ver apenas seu pingente voando, brilhante e perdido, como se fosse o portador de sua alma. E talvez fosse. Talvez fosse.

Febril, rolava em minha cama. No sonho já estava morto, talvez na própria vida já estivesse também. Mas alguma coisa me fazia seguir em frente. Não podia ir. Não ainda.

"Jane...", sussurrei em meio ao suor de minha cama.

Meu rosto estava encharcado com minhas lágrimas.

Liberte-seOnde as histórias ganham vida. Descobre agora