Capítulo VI - O Epitáfio e o Espetáculo / Parte 8: Edgar Visco

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Com uma rosa branca e um buquê de rosas vermelhas no banco ao lado, sem dizer uma só palavra no trajeto, mas pensando em inúmeras, estacionei meu velho carro próximo ao Campo dos Anjos nos últimos raios de sol do dia. Há algo sobre o crepúsculo que me trazia a impressão de que os elos entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos se enfraquecia. O Campo dos Anjos não era um cemitério tão belo e nobre como o Jardim do Descanso, mas possuía a aura celeste e pacífica que todos os lugares dedicados a mãe morte possuem.

O vento soprava e as poucas árvores que o lugar possuía ressoavam ao seu som. Senti o fato como um convite de boas-vindas.

Cabisbaixo, passei por entre os vários túmulos, parando em frente a um deles.

Sendo a morte tua única certeza, o que esperas para viver? Se ainda podes sair deste lugar, tuas possibilidades são infinitas.

Se não quiseres viver por você, faça-o por mim.

Vejo-te do outro lado.

G. Howdds.

O epitáfio de Glenn Howdds.

Glenn, seu desgraçado... Devia ter ouvido a todos, devia ter se afastado de mim! Eu sinto tanto... Tanto! A vingança não me trouxera um centésimo do que pensei que traria. Talvez sangue não se pague com sangue, mas este é um pensamento que nos ocorre apenas em raros momentos. Afinal, como dizer um homem que perdeu sua mulher para este não se vingar? Seu amigo... Seu melhor amigo.

Maldita seja Circodema!

O silêncio pesava tanto que se materializava. Há muito eu não visitava aquele local. A tristeza me afastava... A culpa. É sempre muito complicado lidar com a morte. Dói visitar uma pessoa que você não mais pode ver, que não mais irá te responder por mais que você fale, por mais que você grite, por mais falta que você sinta...

Meus olhos lacrimejavam e não me dei ao luxo de afastar as lágrimas.

Abaixei-me, lançando a rosa ao túmulo.

"Eu não sei se consigo mais, Glenn...", lamentei. "Não sei... Não é mais como era, como você sabe". Levantei-me. "Te devo tanto... Tanto! Me... me perdoe". Aproximei-me da lápide, afagando-a. "Por tudo."

O vento soprou frio, trazendo uma falsa sensação de resposta. A noite – e o inverno – chegava. Mesmo sem ser uma pessoa católica, ou religiosa, fiz o sinal da cruz antes de voltar ao meu automóvel.

***

Não estava a caminho de minha casa. Não... Para lá não voltaria naquele dia; não havia motivos para isso. Para afastar-me, porém, os motivos acumulavam em uma pilha que se aproximava do teto. Precisava de um tempo para mim e temia que se estivesse debaixo de meu próprio teto a chance disso acontecer era absolutamente nula. A polícia de Circodema que fizesse seu serviço! Encaminhei-me para um hotel – se é que poderia chamá-lo assim – barato, bem singelo, na saída da cidade (e não a bela saída aos arredores da ponte Uly). Prates, localizado à beira da estrada, estava mais para uma pousada do que para um hotel, por assim dizer.

Peguei a chave para o quarto com o velho senhor que estava na portaria. Adentrei os aposentos – uma cama de solteiro, um banheiro e uma minúscula TV, nada diferente da maioria das espeluncas em que já dormi –, joguei o casaco sobre a cama, retirando dele o envelope com o resto do dinheiro e saí. Meu destino era o boteco que avistara frente ao lugar, quando chegara.

Bares na beira da estrada são os mais imprevisíveis, isto é certo. Motoqueiros, traficantes, cafetões; não se sabe o que se poderia encontrar ao adentrá-lo. Como não se entra em um lugar destes sem um motivo, eu sabia muito bem o que buscava. Dados os primeiros passos no local, notei algumas das figuras que esperava encontrar; pelas motos do lado de fora sabia que encontraria tais motoqueiros – estes bebiam, e como bebiam. Ocorreu-me que algum viajante desavisado poderia entrar no lugar à procura de um banheiro; teria pena do mesmo.

Ao esbarrar os olhos no homem por trás do balcão, sorri. Sentia-me como se visse a última caixa de minha cerveja favorita na prateleira do mercado: no mínimo, aliviado.

Aproximei-me.

"Pois não?", o homem disse.

"O que você tem aí para acalmar os nervos de um homem com problemas maiores dos quais consegue lidar?"

"Um bom conhaque costuma ajudar." Postou o cotovelo sobre o balcão, aproximando-se com seu longo cabelo e barba branca. Fora, ou talvez ainda era, um motoqueiro como os que ali se sentavam.

"Não...", respondi, olhando-o olho no olho. "Álcool já ajuda..."

"Não entendo onde você pretende chegar com essa conversa, meu jovem."

"Acho que entende, sim...", gesticulei com os dedos, o indicador contra o dedão, junto a boca. Em seguida, tirei o envelope de dentro da minha calça – estava na cintura.

O homem arqueou as sobrancelhas, silenciou-se por um momento, mas respondeu por fim. "Aguarde uns vinte minutos, meu bom rapaz."

Assenti, postando o envelope sobre o balcão.

"Me chamo Thales", ele disse.

"Acho que aceitarei aquele conhaque, afinal."

Thales encheu um copo para mim e deu a volta, encaminhando-se para a trupe de motoqueiro. Um deles se levantou e saiu do lugar. E antes que eu pudesse pedir outro conhaque, e um pouco antes até daqueles vinte minutos, o mesmo voltou. Trocou algumas palavras com o velho balconista e passou-lhe um pequeno pacote. Após uma troca de toques nos ombros, Thales foi em minha direção, entregando-me a encomenda.

Satisfeito por ter conseguido o que queria, coloquei o pequeno pacote no bolso da calça, acenei com os dois dedos juntos à testa e me despedi do lugar, voltando ao meu novo asilo.

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