Prólogo

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Seus pés estancaram a dois passos da soleira da porta. O All Star vermelho desamarrado e encardido denunciava o quanto ele mantinha-se indiferente diante do próximo passo que daria junto ao pai. O olhar de melancolia não pertencia a ele. Nem aos primos sentadinhos no primeiro degrau da escada. E muito menos a mãe. O pai definitivamente era o mais sentido diante daquela situação.

Enquanto observava agora o carro sendo organizado as pressas com seus pertences, o menino franzino enrugou a testa e torceu o nariz ao notar que sua bicicleta amarela ficaria de fora da viagem. Viagem essa sem volta. Ao menos por um longo período de tempo.

Antes de entrar e sentar-se no banco traseiro da SUV sem graça, um último olhar para a casa onde havia crescido. A rua em declive tornava as formas engraçadas a sua vista imatura. O sobrado geminado era exatamente igual ao restante das casas na mesma calçada, seguindo um padrão de construção. A única diferença era a cor das paredes. A dele era branca com o contorno das portas e janelas em azul marinho. Preferia mil vezes mais a casa azul bebê com detalhes em branco e os longos vitrais do segundo andar levemente rebuscados para o marrom.

E era justamente na janela sextavada do segundo andar, onde ficava agora seu antigo quarto, que encontrou Sammy encarando-o com um riso perturbador no rosto. O menino sentiria falta das longas tardes de leitura ao parapeito dela, gozando a brisa fria e o sol do crepúsculo alaranjado que invadia o assoalho e sua alma, juntamente com os contos de Grimm que tanto amava. Mas não sentiria falta alguma do irmão.

Com um suspiro, recobrou na memória um dos motivos da partida. A imagem era nítida, como uma pintura viva de Romero Brito. Era sábado. Ele sabia que ainda era cedo, pois ao olhar pela janela do quarto o céu ainda estava tomado por uma cortina acinzentada, ensaiando uma abertura para o sol fresco da primavera. Ao inclinar a cabeça para o lado, Sammy não estava deitado em sua cama. Muito menos Rocket, o cão da raça Jack Russel Terrier.

Ainda trôpego de sono, quase tombou o corpo ao pisar na barra do próprio pijama com desenhos engraçados de foguetes em RGB. Ele era grande demais para o loirinho, mas o pequeno amava o espaço, os planetas e tudo que envolvia o universo. Quando viu o pijama com sua mãe numa tarde qualquer durante um passeio no shopping, chegou a chorar baixinho ao implorar por ele, mesmo que o tamanho 8 ficasse sambando no seu padrão 6 mediano.

Calmo, sentou-se no chão de madeira escura do seu quarto e efetuou duas dobras na barra para garantir sua segurança. Dispensou as pantufas do Capitão América, optando por sentir o piso geladinho dominando a palma dos seus pés, proporcionando uma sensação única ao corpo ainda quente após o sono.

Curioso, notou James e Brenda ainda dormindo na beliche do quarto ao lado. Riu quando viu a menina roncando toda esparramada na parte de cima. A guerra noturna era sempre a mesma; quem seria o primeiro a dominar o espaço mais alto da cama. E em todas as vezes, era a prima quem ganhava as alturas. Antes de descer, inclinou o pescoço até o quarto dos pais e constatou que eles estavam igualmente apagados. Na cabeceira da cama ao lado da mãe, livros abertos e um óculos de leitura. Ela tinha trabalhado até tarde mais uma vez. Ao lado do pai, o criado-mudo abraçava uma taça de vinho e metade de uma garrafa de Merlot. Janson apreciava degustar aquilo todas as noites antes de desligar o modo automático que operava ultimamente.

Alcançou o primeiro andar do sobrado e seguiu o som da televisão ligada até a sala. Achou que encontraria Sammy ou Rocket por ali, mas nem sinal dos dois. Antes que continuasse sua busca, perdeu alguns minutos absorto nas cenas de DuckTales, com Tio Patinhas nadando em seu cofre de moedas. Tudo que mais queria a vida, além de pilotar um foguete e conhecer o espaço, era mergulhar naquele mar de dinheiro, igualmente ao pato.

Como desenhos não prendiam sua atenção tanto quanto livros, piscou algumas vezes até desprender por completo seus olhos castanhos da tela plana. Agora eles passeavam pela copa e cozinha, buscando o irmão. Em cima da mesa o prato dele estava intocado, denunciando que o mais velho ainda não tinha tomado café. Ao deslizar os olhos até a pia de metal, mordeu o interior da bochecha, preocupado; um rolo de barbante bagunçado, tesoura semiaberta, o pacote de fósforos e uma tampinha redonda azul, largada a esmo montavam o quebra cabeça.

You Are Not You - Newtmas FicOnde histórias criam vida. Descubra agora