Capítulo 35

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Chegando em casa, depois da escola, eu e Catarina entramos e logo sentimos um cheiro forte de cigarro vindo de dentro. Catarina fez uma careta, mas eu já tinha me acostumado com a situação desagradável, o fato de meus pais fumarem tanto me irritou ao ponto de eu começar a fumar também. Eu me tornei tudo aquilo que eu detestava. Mas Catarina não sabia disso, ou sabia e nunca comentou nada.

Minha mãe corria de um lado para o outro, com malas, panelas, plantas e mais um zilhão de coisas. Mesmo sabendo que só ia ficar um fim de semana na casa/sítio de Dave e Helena, ela levava uma tralha.

-Catarina! Que surpresa! Quanto tempo! Como está bonita! -Minha mãe disse enquanto arrastava uma mala para o lado de fora, e tentava fumar ao mesmo tempo. -Desculpe a correria, eu e o Luiz estamos indo visitar o Dave e a Helena, ficaram noivos, sabia? E você, Lilian? Não vai com a gente de novo né? Para variar...

Percebi que ela estava brava por novamente eu ficar na cidade sozinha e não acompanhá-los, ainda mais que agora meu irmão está noivo e ainda nem fui visitá-lo. No entanto, ela pareceu esquecer o ocorrido do dia do noivado, e não fez questão de me obrigar a ir.

-Na próxima eu vou. -Eu sempre dizia isso, e nunca ia. Percebi a cara da minha mãe murchar.

-Tia Maria, é que eu e a Lilian vamos estudar esse fim de semana, colocar em dia a matéria que ela perdeu quando ficou de suspensão, e as provas da etapa final estão chegando e vamos aproveitar para estudar muito juntas. -Catarina, mais uma vez, salvando o dia.

O rosto da minha mãe suavizou.

-Bem, se é assim então, é bom que a Lilian fique em casa mesmo. Faça companhia para ela, Catarina, acho que essa menina está muito sozinha esses dias.

-Porque você me proibiu de ter contato humano! -Retruquei.

Minha mãe apenas me ignorou e voltou a arrumar as coisas. Eu e Catarina fomos para o meu quarto.

-Meninas, estamos indo! -Ouvi minha mãe gritar, 5 minutos após entrarmos no quarto. -Tem comida na geladeira! Qualquer coisa me liga!

Era sempre assim, toda sexta-feira meus pais arrumavam um jeito de saírem mais cedo dos seus trabalhos e irem para o sítio de Dave. Lá era o sonho deles, onde podiam colocar música nas alturas e beber até cair, porque Dave entrava na onda de "farra" deles também, mas eu nunca conseguia acompanhar isso. Eu prefiro ficar na minha, gosto de tranquilidade, e isso sempre fez eu me sentir deslocada perto da minha família. Então, era melhor ficar sozinha.

-Seus pais são muito animados. Trabalham a semana toda, e ainda todo fim de semana pegam estrada para ver seu irmão.

-Só é 1h de viagem até o sítio dele.

-Mesmo assim. -Catarina disse dando de ombros. -Podíamos fazer algo lá um dia. Uma festa.

-Hmm, meio improvável, sabe como meus pais são. Ficariam super em cima e eles não podem nem sonhar que eu bebo.

-Nunca vou entender isso! Eles bebem para caramba, fumam. E você, que é super responsável, não pode?

-Sou menor de idade, então. -Agora, eu que estava dando de ombros. -Mas eles também bebiam quando tinham a minha idade, até antes disso! Às vezes acho que é hipocrisia deles e tal, mas é só meu lado rebelde falando. Sei que de certa forma, eles só querem minha segurança. Mas nem posso comprar essa briga com eles, nem em sonho. Não depois do problema com minhas notas que eu tive. Minha mãe faltou cortar meu pescoço.

-Você ainda está sem celular?

-Não, ela me devolveu hoje de manhã porque a suspensão acabou. E acho que ela também percebeu que eu me esforcei muito nesses poucos dias. Porém ela ficou muito brava, porém foi coisa de momento. Normal.

-E você? Como está? Porque para você, não parece que foi coisa de momento.

-Eu sei que a reação da minha mãe pode ter sido exagerada, mas a minha também foi. Ela só chamou minha atenção por algo errado que eu fiz. Isso é ser mãe, não é? Mas eu não consigo lidar com todas as críticas que ela faz, qualquer coisa que eu faça, até respirar, eu tenho medo de fazer errado, porque ai ela me xinga e eu me sinto mal por muito tempo, e eu não sei lidar com isso. -Percebi que estava chorando, de novo. -Eu só sinto que eu não faço nada certo, e eu sinto tanta raiva o tempo todo. Tenho essas sensações impulsivas dentro de mim que me dão vontade de quebrar as coisas, xingar todo mundo e jogar tudo para o ar.

Catarina não falou nada, ela percebeu que era o meu momento. Eu já estava segurando as coisas por muito tempo e era hora de desabafar, então continuei.

-Sabe por que resolvi hackear o site para mudar minhas notas? Porque eu cansei da escola, Catarina! Não aguento mais aquele lugar! Não tenho forças para assistir as aulas. Sabe por que eu durmo na maioria delas? Porque meus pensamentos não me deixam dormir durante a noite, e então eu não aguento Catarina, eu simplesmente não aguento! Aqueles alunos do fundo, em grupinhos, que param a aula de história ou tiram sarro da professora de sociologia, com comentários machistas, homofóbicos e racistas, disfarçados de piadas, só para provocar. Eu simplesmente não sei lidar com isso, eu perco a paciência, e fico muito mal mesmo. Você não faz ideia do quanto isso me afeta. Queria que não me afetasse, mas me afeta! E mesmo não sendo necessariamente para mim, eu tomo as dores das outras pessoas. E eu sinto que nós não estamos evoluindo, porque com as pessoas daquela sala, sinto que ainda estou presa na idade média! -Faço uma pausa e respiro fundo. -E não dá pra aguentar uma aula de física inteira com o professor tentando fazer com que eu entenda, porque eu não vou. Posso ser capaz de tirar um 10 em todas as matérias de humanas e linguísticas, mas não tenho aptidão nenhuma para exatas e biológicas e ainda assim, sou obrigada a estar ali. Eu quero entender de música, política e porque meu psicológico está tão fodido assim! E porque outras pessoas estão tão fodidas também! Porque agora todo mundo parece estar mal, triste e cansado da vida, sendo que nem chegamos na fase adulta e todo dia eu ou alguém a minha volta tem um ataque de pânico. E eu quero ajudar todo mundo, mas não tenho ideia de como fazer isso porque nem eu sei como me ajudar! Quero entender porque as únicas coisas que me motivam a levantar da cama é ver você e o Thomas. Quero entender, porque eu quero que o tempo pare e eu suma, porque eu só tenho 17 anos e ainda tenho muita coisa para fazer, mas eu não quero fazer mais coisa nenhuma. -Em meio a isso tudo, eu havia começado a soluçar e estava ficando sem ar. -Eu só quero que a dor passe, eu só quero que esse buraco no meu peito que se abriu, não sei como nem quando, se feche e pare de doer, porque dói muito, e eu não sei o que aconteceu que me fez chegar aqui. Mas uma parte de mim quer ir mais para o fundo, e apesar de tudo, essa parte que fala com você agora, quer encontrar a luz de novo.

Eu parei de falar. Estava soluçando demais para continuar e estava começando a ficar sem ar, uma crise estava chegando...

No entanto, eu olhei pra Catarina, que mesmo com a cabeça abaixada dava para perceber que chorava também, então tentei controlar a respiração o máximo que pude para tentar formular alguma frase, mas estava difícil. Meus pulmões pareciam que não sabiam mais qual era a sua função.

-Me desculpa. Me desculpa mesmo, Lily. -Disse Catarina, e eu nem me dei o trabalho de tentar perguntar o porque dela estar se desculpando, não conseguia falar, mas quem deveria se desculpar sou eu, por ter jogado tudo em cima dela de repente. -Eu sou uma péssima amiga. Não notei o quanto você estava mal e agora tudo que eu ia falar parece o momento errado.

Percebi que ela também estava aos soluços. Pelo visto, eu não era a única guardando as coisas para si.

-O que aconteceu? -Minha voz saiu baixa aos meus ouvidos, porém consegui formular a frase  mesmo com dificuldade.

Ela não disse nada, apenar levantou a blusa o suficiente pra eu ver sua barriga, e vários roxos de hematomas espalhados por ela. Meu coração doeu tanto que eu achei que poderia vomitá-lo ali mesmo. Catarina já tinha parado de chorar, e estava com uma cara muito séria e estranha, parecia... com medo.

-Quem fez isso com você? -Respirei fundo e perguntei, me endireitando. A tristeza súbita que eu havia sentido tinha se transformado em raiva, muita raiva.

-Foi o Breno.


Uma vida vazia [COMPLETO]Where stories live. Discover now