Capítulo 41

442 34 13
                                    


Chego em casa sorridente e cantando. Minha mãe percebe enquanto faz a janta.

-O que aconteceu? -Pelo seu tom não sei se ela está me repreendendo ou tirando sarro de mim. Acho que os dois.

-Nada. Só estudamos. -Droga, respondo rápido demais.

-Se algo sério estiver acontecendo entre você e esse garoto, quero que me conte. Eu nem sei o nome dele!

-Thomas.

-Não deixe isso te distrair dos estudos.

-Mãe, somos só amigos. Relaxa. -Que se pegam ocasionalmente e que são exclusivos. Mas não digo isso em voz alto para a minha mãe. Estar na roda-gigante sem falar sobre a roda-gigante. -Além do mais, estávamos estudando, então.

-Tudo bem. Quero ver suas notas depois. Você ainda tem seu último ano no ensino médio ano que vem, mas muitas matérias que você estuda agora caem no Enem e vestibulares.

-Diga-me algo que eu não sei e que todos os professores não me dizem todos os dias.

Ela suspira. Estou irritando ela. Não quero discutir com minha mãe hoje. Estou feliz. Estou de bom humor. Quero manter isso. Por favor, por favor, por favor. Imploro para alguma força maior do universo.

Antes que ela possa responder algo digo:

-Acho que quero começar a ir ao psicólogo.

-Como assim? -Ela quase não presta atenção na pergunta.

-Quero começar a ir ao psicólogo. Com toda a carga que vou ter ano que vem pelo vestibular, acho que pode ser bom. Muita pressão, sabe?

Minha mãe para o que estava fazendo e me encara com a mão na cintura. Me lança aquele olhar de mãe que faz qualquer um tremer.

-Você nem sabe que curso quer fazer e agora vem me dizer que está se sentindo pressionada? Pressão é você sair da pobreza e conseguir o que eu e seu pai construímos hoje, menina! Só Deus sabe o que eu e seu pai passamos nas nossas faculdades! Trabalhamos dobrado tentando pagar nossos estudos. E você que vai ganhar tudo de mão-beijada vem me dizer isso? Por favor, você tem que olhar para o seu irmão! Olhe o duro que ele deu, agora está construindo uma família! Você está na fase fácil da vida, Lilian. Você não sabe o que é pressão. Você não sabe o que te espera lá fora, no mundo real.

As palavras da minha mãe são como um soco no estômago e quebram meu coração. Parecendo que tudo o que eu estava sentindo não passava de pura ingratidão. 

Mas, antes que eu pudesse subir para o meu quarto, e fingir que aquela conversa nunca existiu após chorar um monte, a voz de Catarina me implorando para tentar, me deixa parada no mesmo lugar encarando a minha mãe. Seja forte, Lily. Como Catarina.

-Por favor, mãe. -Meus olhos já estão marejados e o nó na minha garganta é tão insuportável que faz minha cabeça doer. -Eu preciso. -É tudo que eu consigo dizer para não me afogar nas minhas lágrimas contidas.

-Você está chorando, Lily? -Ela chega mais perto mas sem encostar em mim. Não sei se está com mais raiva ou preocupada, talvez os dois. -O que está acontecendo? Converse comigo. É a escola?

Quase digo: Sim. Eu odeio aquelas pessoas, aquele lugar e todo esse sistema educacional fodido. As que eu gosto posso contar nos dedos de uma mão. Mas não digo nada, nego com a cabeça. Não quero sair da escola, nem nada do tipo. De alguma forma, aquele inferno pode valer alguma coisa no final. 

-Foi algo que eu e seu pai fizemos? Ou Dave?

Quero dizer: Sim. Eu nunca sou o suficiente para vocês. Tudo o que eu faço, vocês me comparam ao Dave e dizem o quanto ele é melhor naquilo. Eu sou diferente, porra! Eu quero fazer Música na faculdade! Eu quero que vocês parem de fumar e matar um pouquinho de vocês a cada dia porque eu amo vocês, e se vocês morrerem eu morro junto, porque eu entrei nesse estúpido vício de cigarro e amor também. Eu quero que vocês entendam que está tudo bem eu não ser igual a vocês, e querer ficar na minha, e não ouvir as mesmas músicas que vocês, e odiar quando vocês bebem e fazem um estardalhaço, e quando você e papai brigam por uma coisa tão supérflua como dinheiro! Eu quero ser notada por quem eu sou! Quero me sentir mais amada e menos cobrada!

Porém, novamente, nego com a cabeça e não digo nada. Certas coisas não cabem a mim dizer ou achar uma solução. Talvez eu de fato nem me permita ser amada pela minha família por me isolar tanto. Eu odeio isso, porque quero achar que eles são o problema. Mas o problema sou eu.

Começo a chorar, dessa vez de verdade. E minha mãe me abraça e começo a me sentir sem ar, porém me permito aquele abraço.

-Por favor, converse comigo Lily, para eu poder te ajudar.

Havia real preocupação e urgência na sua voz, e meu coração se aperta. Ela estava se sentindo impotente. E estava, de fato. Eu odiava esse sentimento, e ainda mais fazer outras pessoas senti-lo em relação a mim. 

-Me desculpa, me desculpa, me desculpa. -É tudo o que consigo dizer com a voz embargada, aninhada nos seus braços. Eu estava um caco em lágrimas e catarro, com o rosto vermelho, inchado e sem ar.

Ela continuou a me abraçar até me guiar ao sofá, onde eu me sentei/me joguei. Minha mãe aparece com um copo d'água e me dá na tentativa de me acalmar. Eu tento, tento e tento. Mas minha mente não para de dar voltas e volto a soluçar. Mas as lágrimas não caem mais. Eu não as tenho mais.

-Estou preocupada com você, Lilian. Me diz o que eu posso fazer para te ajudar. Por que você se sente assim?

Eu me faço essa pergunta todo dia, mamãe. Por quê? Por quê? Por quê? Por que estou tão quebrada? Por que me sinto tão incompleta? Como deixe-me chegar a esse ponto? Eu falhei? Você falhou? Nós falhamos? Talvez o mundo tenha falhado comigo. Com todos nós. É uma puta bola de neve que só vai ficando maior. Estamos todos quebrados.

Porém não digo isso, é demais para ela. Até para mim, colocar tudo em palavras.

-Eu já disse. -Digo com uma voz fraca. -Só não me sinto bem em fazer nada, as coisas não são como eram antes. Acho que devo falar com um profissional.

Digo, quase que repetindo as palavras vistas num comercial ou lidas em algum livro.

Antes. O que é o antes? Eu me lembro do antes? 

-Vou conversar com seu pai quando ele chegar. Acho que ele pode conhecer alguém, da época em que ele trabalhava no hospital como enfermeiro.

Apenas concordo com a cabeça, tomando mais um gole d'água. Me acalmei.

-Me desculpa. -Digo de novo. -Eu só deixei as coisas acumularem. -Uma verdade pelo menos.

-Você está se sentindo melhor? -Não. Me sinto exposta, fraca.

-Sim, só cansada, sabe? Estudei a tarde toda. Deve ser o estresse.

-Tudo bem, vá para o seu quarto descansar um pouco. Leve uma garrafa d'água. Te chamo quando a janta estiver pronta.

Concordo com a cabeça e vou para o meu quarto.

Deito na cama e começo a chorar novamente, mas dessa vez silenciosamente para minha mãe não ouvir. Sinto que tudo que fiz foi deixá-la preocupada. Mais um problema. Acho que piorei tudo, de novo.

A caixinha de remédios, no quarto dos meus pais, surge na minha mente outra vez. Uma solução mais rápida, mais fácil, menos dolorosa do que ter de abrir meu coração, esperar uma resposta e torcer para que me entendam. Muito mais fácil. Muito mais covarde. Contudo, eu nunca fui corajosa mesmo.

Fecho os olhos, torcendo para o dia acabar logo. No entanto, eu me conhecia bem o suficiente para saber que eu não dormiria agora. Meus pensamentos não me deixariam dormir.

Como um dia começa tão bem e termina tão mal? Por que sempre que experimentamos a mais bela e pura das euforias de felicidade somos atacados com socos no estômago de maus acontecimentos que a vida traz à tona, sendo até mesmo, na maioria das vezes, feito por nós mesmos? Um pequeno deslize, uma fala. Estraga tudo. A felicidade é uma máscara para a feia realidade. 

Uma vida vazia [COMPLETO]Where stories live. Discover now