Capítulo 47

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-Vocês não vão acreditar no que aconteceu! 

Catarina chegou quase derrubando as cadeiras na sala de aula.

-O que aconteceu? -Pergunto.

Ela abre a boca para responder, no entanto o sinal da primeira aula bate interrompendo-a.

-Depois. No recreio. Isso vai levar algum tempo.

Thomas e eu nos entreolhamos, assustados. Ótimo jeito de começar uma segunda-feira.

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No nosso lugar de sempre no estacionamento, Thomas e eu nem acendemos nossos cigarros, ansiosos, esperando Catarina falar. Ela estava claramente ansiosa, o que me assustava, porque Cat, até nas piores situações, era muio calma. A ansiosa do rolê era sempre eu.

-Desembucha!

-Então, vocês sabem que domingo fui lá na reunião.

Thomas franze o rosto.

-Que reunião?

-Ah, desculpa se não comentei diretamente com você, Tom. É uma reunião na igreja perto da minha casa para garotas e mulheres que sofreram algum tipo de violência. Associação das Mulheres Fortes. Nós chamamos de AMF.

-Ah sim. -Thomas responde de cabeça baixa. Acho que Thomas se afeta mais com esse assunto do que eu. Deve haver algo relacionada à família dele.

-Enfim, fui na reunião domingo e eu encontrei a Amanda lá.

Tudo fica silencioso por um momento.

Amanda Silva Carvalho. Ex-namorada de Thomas. Não que eu tenha stalkeado ela e descoberto os dois sobrenomes dela, e que ela terminou recentemente com um tal de Carlos, que fez Thomas ser expulso da sua antiga escola. Jamais. Eu sou mais forte que isso. Puft.

-E? - Eu finalmente digo, pedindo para ela continuar. Apesar de estar todo mundo pensando a mesma coisa que eu. O que Amanda estava fazendo numa reunião para mulheres que sofreram violência?

-Eu não devia contar nada para vocês, tipo, essa coisa de anonimato é muito séria e tal. Mas eu acho necessário falar, principalmente para você Thomas. Porém, isso não pode sair daqui nunca, sério. O que eu disser, morre aqui.

Encaro Thomas, e nunca o vi tão sério na vida. Ele está esperando.

-Tudo bem. -Digo. -Não vamos falar nada, Cat. Entendemos. Conta logo.

-Ok. Tipo, eu sabia que Amanda morava perto de mim e que tínhamos alguns amigos em comum. Sinceramente, essa cidade é um ovo! Mas quando encontrei ela lá fiquei meio paralisada. Não falei com ela, nem nada, porque seria loucura, ela não me conhece de verdade. Enfim, nós formamos aquele círculo e cada uma fala algo que acha que deve falar. Igual nos filmes mesmo. Achei bem legal. Enfim, como era minha primeira vez, falei pouco né? Claro que não! Vocês me conhecem. Desabei lá na frente e foi bom, porque ali geral me entendia, tirei um grande peso das costas. Já quero me consultar com minha psicóloga porque foi tão bom falar! Contei para vocês que minha psicóloga é mulher? Acho que nã...

-Catarina! Foco! Amanda.

-Ah, sim! Quando Amanda falou eu realmente fiquei morrendo de dó, gente. Thomas, eu sei que o relacionamento que ela tinha com você era super abusivo também. De formas diferentes, claro. Mas acho que é verdade quando dizem que tudo que acontece tem um motivo por trás. Amanda sofreu muito com um pai alcoólatra. Ele abusava da mãe e dela. Tipo, desde que ela era criança. Batia e estuprava. Gente, foi muito pesado, e ela não derramou uma lágrima sequer. Falou tudo com uma naturalidade que me assustou. Enfim, era a primeira reunião dela também, pelo que fiquei sabendo, ai ela falou tudo também. O pai dela morreu já tem uns anos de cirrose, por isso que ela nunca chegou a falar sobre os casos de abuso, porque já haviam acabado e tudo tinha se formado um borrão na mente dela. A mãe também se ocupou com o trabalho para esquecer, e sempre dizia para a filha manter segredo sobre isso, para não haver nenhum escândalo. Parece que a mãe dela tem algum cargo importante público, sei lá.

-Ela trabalha na prefeitura. -Thomas fala baixinho, olhando para o chão, paralisado. Ele não aguentou e já estava fumando. Pego o cigarro da mão dele, e trago também.

-Nossa! Uau. Enfim, continuando. Ela comentou que veio nas reuniões por indicação do psiquiatra, disse que estava se cuidando, tomando medicamentos, porque nesses anos desenvolveu borderline, algo assim. Eu não sabia o que era, então pesquisei quando cheguei em casa.

-Transtorno de personalidade. -Falo rapidamente. Já tinha lido sobre, um pouco. Um pouco de todas as doenças mentais. 

-Pois é. Claro que é bem mais profundo que isso, fiquei com dor de cabeça só de ler tanto, mas isso martelou na minha cabeça a noite toda. Precisava falar com vocês. Achei que você precisava saber, Tom. 

Cat olha diretamente para ele, mas Thomas está mais quieto que nunca. Fico apreensiva.

-Tom. -Acaricio seu braço, mas ele desvia.

-É minha culpa. -A voz sai falhando. Quando olho mais perto percebo que está chorando. Sua mão que segura o cigarro está tremendo.

-Não. Claro que não. Você a salvou! Ela pediu ajuda porque você conversou com a Laís, Laís a aconselhou. Você fez tudo que podia.

-Mas eu poderia ter notado antes, não podia?! -A voz dele começa a ficar mais alta. -Céus! Somos mais parecidos do que pensei. Achei que ela tinha sido uma completa babaca simplesmente porque lhe era conveniente, mas porra, olha por tudo que ela passou! Como eu não pude perceber? Eu sou um estúpido e egocêntrico que só consegue pensar em mim mesmo. É tudo eu, eu, eu, eu. Thomas e seus problemas e foda-se os outros.

Somos mais parecidos do que pensei. A frase martela na minha cabeça. Os problemas de Thomas e o pai...Não posso entrar numa espiral. Não agora. Tenho que dar suporte ao Thomas.

-Não fala assim. Não tinha como você saber, ok? Se ela nunca falou sobre isso, não tinha.

-Não foi como se eu insistisse muito no assunto "família" também...-Ele ri sarcasticamente, traga o cigarro e desce outra lágrima. Ele está tremendo muito. -Meu Deus, sinto que vou vomitar. Essa sensação...-Ele afunda a cabeça entre os joelhos e ouço o choro abafado. -Nunca vai embora.

Antes que eu posso dizer algo para acalmá-lo ainda mais, o sinal para avisar que o recreio havia acabado toca. Troco olhares com Catarina avisando que ela deveria ir para sala. Eu ficaria ali. Ao lado de Thomas.

-Lily, e se ela foi obrigada a fazer aquilo com o Carlos? -Ele me olha como uma criança e eu não sei mais o que fazer. -E se não foi culpa dela? Esse transtorno dela, eu... -Ele soluça.

-Não tem como saber, Thomas. -Eu o abraço e ele retribui. Deixo ele enfiar a cabeça no meu pescoço e sinto as lágrimas dele na minha pele. É quente. -Sinto muito, por tudo. Mas você não pode se culpar por isso, vai acabar enlouquecendo. Você a ajudou. Você realmente ajudou. Fique feliz. Consciência limpa, ok?

Ele não responde. Continua chorando no meu ombro e não sei mais o que fazer. Não sei como ajudá-lo. Não sei como fazê-lo perceber que ele não é culpado, porque também me faço essas mesmas perguntas em relação as minhas atitudes para com as pessoas. Estou me quebrando junto a ele. Então só o abraço o mais forte que posso e torço para esse sentimento de impotência passar, porque é tudo que posso fazer agora. Estar ali por ele.

Uma vida vazia [COMPLETO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora