Prólogo

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— Você já ouviu falar?

A voz de um velho enche nossos ouvidos, apesar do ruído costumeiro daquele bar. Introduzira-se a mesa de bar sem ao menos ser chamado, seus olhos vidrados, distantes da conversa de outrora, agora voltados à mim e Stella, a garota que me acompanhava. Viera à nossa mesa como um espírito ambulante, abandonando tudo que fazia anteriormente apenas para fazer aquela pergunta. Quem ele pensava que era?

— Ora, e quem não? — Stella o responde, tomada por um súbito interesse que a fez voltar-se à figura moribunda que parara de pés juntos, olhando diretamente para nós. O homem vestia-se dos pés a cabeça como uma caricatura de um pirata da antiga era, as roupas machadas pela maresia e um sorriso podre que, mesmo sem presas, parecia amedrontador de alguma forma. Dei de ombros, embora não pude evitar de, por um momento, pensar se minha conversa era desinteressante ao ponto dela preferir aquele pobre desafortunado a mim. — Quem não gosta de uma história de fantasmas? — ela termina com uma piscadela, esbaldando-se em mais um gole da cerveja preta. 

— Não são fantasmas, asseguro — resolvi dizer afinal, recebendo em troca um fitar astuto da moça, que avaliava minha expressão em busca da mentira. Não havia. — Vi com meus próprios olhos, a algumas semanas atrás.

— Que perigo, então — o homem responde, o tom monótono de sua voz reverberando em meu peito em estado de alerta. Por um momento, vacilei.

— Perigo? — Stella sorri. — Você tem uma história, não tem?

— Se tenho! — O velho retribuiu com seu sorriso sem dentes, olhando para mim como se quisesse me fazer notar o canino de ouro, tilintando entre o vão dos incisivos e molares superiores. Se achava que aquilo me faria confiar, apresentando-se como um dos meus, estava errado. Naquele momento, evitava-o.

— E sobre o que é? — Os olhos azuis de Stella brilhavam de excitação. Eu sabia que não poderia pará-lo de contar, por mais que quisesse.

— Uma terrível maldição — respondeu, seco e sério. Olhava para Stella, mas sabia que sua voz era direcionada para mim. Aquela história era para mim. 

Começou:

— Veja bem, fui pirata antes mesmo das crianças de hoje terem sonhos.

"Enquanto jovens como você, rapaz, perdiam tempo mijando na cama e gritando pelo seios da mãe, eu me aventurava pela Grand Line. Na época, ninguém tinha coragem de ir até lá. Minha tripulação foi uma das primeiras a sair do East Blue em rumo ao desconhecido. Foram anos de glória para pobretões como eu e eles. Fizemos fortuna e visitamos ilhas que vocês, filhos dos mares isolados, nem podem imaginar. Mas o destino não dá presentes para ninguém. Se você ver algo fantástico, pagará o preço, amigo."

— E que preço, meu Deus! — ele exclamou, parando todos que estavam no bar para ver o que passava. Eu senti vergonha, mas Stella parecia tão entretida que, mesmo tímida como era, não deu bola.

"Éramos fracos. Bastou o ecoar impiedoso das palavras de Roger e milhares de sujeitos foram ao mar, em busca do tesouro escondido. Alguns patéticos, sem brilho ou ambição, mas outros... Ah! Estes valiam por mil. Eram fortes como monstros, obstinados no desejo de ir até o fim como ele, seu rei, foi. Não poderíamos vencê-los. Por mais que nossa luta tenha perpetuado por mais tempo que deveríamos na primeira metade da Grand Line, ora ou outra essa faísca se esgota. Voltamos para o começo com o rabo entre as pernas, para ser rei entre os insetos. A ambição por poder crescia dia após dia, e roubamos da nossa própria casa ouro e vidas. Os anos de gozo não duraram tanto dessa vez, no entanto. Certa noite, depois de saquear uma ilha, dormíamos calmos com os embalos da maresia. Tudo parecia silencioso, mas pressinto que, naquele momento, já havíamos sido invadidos."

— Meu Deus! O que você quer dizer com isso? — Stella pergunta, incrédula com a história e de olhos arregalados. Mesmo eu estava interessado.

— Espere e eu lhe direi. — O velho aumentou seu sorriso ao notar que fisgou minha atenção. Ele sabia pelo o que eu havia passado.

"Como ia dizendo, dormíamos como em qualquer outra noite. As ondas do mar sempre foram relaxantes para mim, que tenho sono tão pesado. Quando acordei na manhã seguinte, revigorado por todo o descanso que só dormindo nas redes do seu próprio barco se consegue alcançar, percebi o silêncio do convés. Corri temeroso, as lembranças da Grand Line medrando-se pela minha cabeça, e quando subi as escadarias do galeão, não havia nada. Todo nosso tesouro havia sido roubado, como se nunca estivesse ali para começo de conversa. Meus companheiros, por sua vez, estavam caídos pelos cantos, alguns de garganta cortada, outros apunhalados pelas costas, para sempre presos numa expressão de pura confusão ou simplesmente neutralidade. Concluí, como o único sobrevivente, que fui deixado para trás porque não vi o que aconteceu. Posteriormente, chegaram a mim os jornais e colunas que contavam outros relatos semelhantes: a histórias daqueles que também ficaram para trás. Ninguém que os vê sobrevive para contar a história, meu filho. Não sabemos quem são e vez ou outra até duvido da minha própria memória, mas, bem no fundo, eu sei o que eu vivi. Eu sei a dor que senti ao notar minha tripulação morta. Depois do saque, restou-me apenas essa história pavorosa para contar aos pobres coitados que, assim como eu, foram marcados. Pelo o que, você pergunta? A marca do gato. Uma bandeira preta com um gato de tapa-olho debochado, que ri da sua desgraça na parede da sala do tesouro e nessa cicatriz que me deixaram à ferro-quente para sempre no antebraço."

— Foi o fim do meu bando — o homem conclui a história, tirando um charuto do bolso e o acendendo. No antebraço direito, vejo um gato jocoso já cicatrizado, mas ainda aparente no couro. O velho capitão havia se tornado seu gado, assim como eu, que hoje carrego a mesma estigma em meu braço para me lembrar das minhas falhas. 

Éramos fracos, de fato. E, aos fracos, resta a certeza de que sempre haverá um peixe maior para os abocanhar. 

Prisão de GatoWhere stories live. Discover now