nós podemos nos divertir

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Um dia acordei e percebi que o mundo gira, sim, ao redor de mim. Eu sou meu protagonista, sou meu point of view. Tudo na minha vida é sobre mim, não há como modificar um fato. Eu acordo e sou eu acordando, com meus fios de cabelo desgrenhados e uma fome estúpida rasgando meu estômago. Sou eu andando pelo quarto, tateando meus óculos sobre a bancada. Sou eu. O mundo gira ao redor de mim e não vou esconder nada. Se trata de mim aqui, lutando todos os dias, indo ao banheiro para me arrumar, descendo as escadas para comer. Sou eu. Se o mundo não gira ao redor de mim, gira ao redor de quem? Esse é o meu mundo, minha perspectiva, eu enxergo ele de acordo com a minha ideologia. Se olho os raios solares cortando a minha sala de estar, eu acho lindo e quero fotografar, quero ele na minha pele me aquecendo e dando amor. Mas é minha perspectiva. Porque se o mundo não girasse ao redor de mim, mas sim de outra pessoa, talvez ela fechasse as cortinas ou se afastasse temendo um câncer de pele. Mas as cortinas estão abertas. O mundo gira ao redor de mim.

E, por girar ao redor de mim, eu preparo panquecas para o café, porque se trata de mim agora. E encontro o meu namorado, que deveria estar dormindo, descendo as escadas lentamente cheio de hesitação. Apareço com um copo de leite para ele beber e, sentado na mesa de jantar, ele bebe em silêncio. Eu ainda nem terminei de me arrumar, mas estou morrendo de fome e daqui a pouco dá nove da manhã. Como eu queria estar dormindo agora...

— Aonde está indo? — Noah finalmente faz uma pergunta, e quando me viro para colocar as tigelas do arroz sobre a mesa, eu vejo seu bigode de leite.

— Emissora — entrego garfo e faca para ele e me sento para comer. — Tem uma reunião de emergência hoje, porque fecharam o elenco de última hora. O elenco dos jurados está fechado, mas dos participantes ainda não estava. Um dos confirmados de antes acabou desistindo, não me lembro o motivo... Então tiveram de escolher outra pessoa e isso atrasou um pouco as coisas.

— Ah... — ele coça as pálpebras.

Eu encaro minha panqueca um pouco antes de comer. Vestindo apenas a calça bege, eu cruzo as pernas na cadeira e não ligo se o sol que vem da janela está fritando minhas costas. Quero um pouco de ardência, porque é boa. E o moço à minha frente está com o rosto meio inchado, o cabelo bagunçado. Está apenas olhando para a própria comida como se fosse uma baita decisão comer ou não.

— O que foi? — pergunto com a boca cheia.

— Eu tinha secretamente planejado sair com você hoje a um parque de diversões — sua voz rouca baixinha não me deixa entender muito, mas espero que seja isso.

— Oh, pode ser mais tarde?

— Uhum, é mais para o final de tarde. Você vai demorar muito lá?

— Não tenho certeza, porque também tem a questão do roteiro...

— Entendi... — ele cutuca a panqueca com a pontinha do garfo e solta um suspiro.

— Alguma coisa te incomodando?

— Nada — ele decide que não vai comer, porque afasta o prato e deixa os talheres sobre a mesa. Ah, pronto. — Segunda vou me rematricular na faculdade, as aulas vão começar daqui a duas semanas, acho.

— Ah, que bom... — falo no automático, mas Noah me olha com uma expressão confusa. Como o último pedaço e fico pensando em pegar a dele para comer, já que ele não quer. — Que foi?

— Significa que não vamos mais nos ver, Josh.

— Oh, ok...

— Isso não te provoca nenhuma reação?

Me engasgo com o último punhado da panqueca. Levo alguns segundos para me recuperar da tosse.

— Claro que sim... Mas é inevitável, não? Temos nossas vidas. Se você for ficar chateado por algo que só vai acontecer no futuro, vai gastar seu presente todo chorando pelos cantos — eu digo com toda paciência do mundo, porque desde ontem o Noah está meio estranho comigo.

— Eu não estou dizendo que estou chateado.

— Está chateado, sim — me levanto da mesa e vou até a geladeira. Dane-se, vou comer a torta agora mesmo. Ponho num prato, pego outro garfo e vamos lá. — Olha, Noah, você pode ir comigo, se quiser. Pode ficar quietinho ou então numa sala de espera, não sei, talvez comigo na sala... Enfim, vou dar meu jeito, mas você pode ir comigo. Depois, podemos ir a algum lugar para comer no almoço ou no lanche, não sei. Então nós podemos nos divertir nesse parque de diversões. Tudo bem por você?

Eu me sento de novo à mesa com a minha torta e tiro a ponta da fatia para dar a Noah. Ele come quando estendo o garfo.

— Tudo bem por você? — repito.

— Uhum — balança a cabeça.

— Agora coma, senão eu não te levo a lugar nenhum.

Ele puxa o prato de novo e começa a comer. Eu tiro algumas conclusões sobre o episódio de ontem e hoje, mas não quero pensar muito nisso. É melhor que esquecer tudo isso. Não quero brigar com ele.

crises et chocolat  ✰  Nosh  ❖  Now UnitedWhere stories live. Discover now