nós precisamos ficar longe um do outro por um tempo

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Noah

Vai lá, homem. Nunca abaixe a cabeça, você domina o mundo. Você domina o leopardo, as focas e as formigas. Você derruba tudo e tudo é seu. Você é o mais inteligente e o mais másculo. Isso é força. Você é forte. Você cria regras e as quebra. Você não pode chorar, não pode ser emotivo, você não pode pedir desculpas. Você sempre está certo. Tudo está correto do seu jeito. Somente do seu. E sua raiva, sua ira... Ora, é seu poder, sua arma. És feito de raiva e ela corre pelas suas veias, ávidas. Isso é o melhor que você tem. E que se não puder provar que é tudo isso, não é nada. Exatamente nada.

Não sei por que estou pensando nisso... Não sei por que estou cristalizando o conceito de masculinidade na minha cabeça. Vejo-me afoito, sem graça, sem cor nem piedade. Não sinto-me menos homem por estar chorando ou sei lá o quê. Mas é a dor de segurar o rosto de quem tanto amo e perceber que talvez machucá-lo doa mais em mim do que eu um dia pensei.

Seus olhos assustados são quase os mesmos vistos meses atrás, quando chorou baixinho na escada da casa da sua família e eu achei que poderiam batê-lo apenas por não ser o que as expectativas deles criaram. Às vezes sinto pena do Josh. Às vezes sinto pena de mim. Mas nada verdadeiramente bom é feito com pena, não é algo que surpreende alguém. Queria-o quase perfeito junto a mim, mas ele não é. Ele não é e eu também não sou. E a gente se bate e se entende e chora junto porque acho que merecemos um ao outro.

Merecemos um ao outro, conquanto não quero dizer que estou aceitando tudo. Guarde suas pilhérias ou ofensas, eu estou exausto disso também. No meio da noite, não há ninguém comigo senão ele. Então o que teriam de julgar? Se o Josh às vezes amarga-me e tudo mais, eu também vejo-me nesse papel, tanto em relação a mim quanto em relação a ele. Sou um fruto que é doce, mas deixa um gosto amargo na boca um tempo após ser ingerido, quando se é apenas uma vaga memória. Escove os dentes quando me mastigar. Eu sou assim e ninguém pode me mudar.

— Eu vou dizer — Josh enxuga as lágrimas do rosto e afasta-se para me olhar. — Eu vou dizer o que penso... — faz uma pausa, engole em seco. Os olhos marejados e os lábios levemente trêmulos. — Eu não quero terminar com você. Vai ser diferente de tudo que já fiz na vida, mas acredito querer esperar você voltar do exército para começarmos algo mais fixo juntos. Do jeito que você preferir. Quero ainda estar com você.

— Você está tentando me convencer a não terminar — comento, e agora parece que eu disse o óbvio. — Desesperadamente tentando me convencer. O que aconteceu, Beauchamp?

— Eu não quero te perder — olha-me tão profundamente nos olhos que eu fico sem saída. — Porque você parece determinado.

— Estou determinado sobre dar um tempo. Não é sobre mim. Nós precisamos ficar longe um do outro por um tempo.

— Nós já ficamos.

— Eu sei... — engulo em seco. Afasto-me dele para andar um pouco, preciso pôr o nervosismo em atitudes. — Só que precisamos nos reajustar. Você está numa vibe, eu estou em outra... Para você, nosso relógio foi resetado no instante em que aceitei o pedido de namoro. Mas para mim, não. Eu ainda estou dando continuidade ao que vivemos em Paris, já há bastante tempo atrás. É por isso que estou pensando em coisas mais sérias agora. Mais sólidas. Palpáveis. Porque parece que já estamos juntos há séculos. Você ainda está no sentimento de início de namoro. Eu não tiro sua razão, ainda estamos no início do namoro. Mas não é como se nossa relação fosse algo novo... Entende agora?

Andei enquanto falava. Estou parado do outro lado da mesa. Josh apenas bagunça o cabelo.

— Eu entendo — encosta-se na mesa. — Eu sei o que você quer dizer.

— Então... Acho que vou indo — contorno a mesa apressadamente, estou envolto em meus pensamentos, eu não tenho mais fôlego para falar. Ademais, se eu ficar, eu fico. Eu fico com ele e fico com nós e desisto de tudo que eu pensei que faria. Eu me assusto com a ideia de viver uma vida sem ele.

— Ainda não — segura meu braço quando passo por ele. Penso em me afastar, mas espero pra ver. — A gente se encontra toda vez, então eu sei que isso é temporário. Não importa o tempo que passe... Aquela nossa conexão na Grécia... Caralho, Noah, foi a melhor coisa que vivi. Juro. Por mais que tenhamos brigados sobre... bem, sobre nós. Quando deixamos essas coisas de lado e focamos em como nós damos bem juntos, eu me sinto bem. Você se sente bem. Eu te disse agora há pouco que eu não tenho referências no amor. Mas só queria complementar que nós somos nossa referência no amor. E tudo que vivemos até agora foi bom pra cacete. Mesmo que algumas coisas acabem machucando. Nos amamos.

Eu fico com uma raiva. Mas não é raiva sinônimo de ódio e destruição. É uma raiva mais difusa, mais acarinhada, uma raiva que faz um cara jogar alguém na cama e amarrar em volúpia. Uma raiva que nos faz levantar às cinco da manhã para correr numa maratona. Uma raiva mais genérica, mas branda, mais acalorada, que dá energia e faz tudo mudar. E é no embalo dela que eu chego perto o suficiente para beijar a boca de Beauchamp. Eu estou com raiva e ele é o causador. Se tivesse dito isso um mês atrás, tudo estaria bem. Se tivesse dito ontem, tudo estaria bem. Mas hoje sou outro alguém e até meu cabelo está crescido demais para o normal. Essa raiva me faria arrancar a roupa dele, empurrá-lo ao banheiro e terminar o serviço por lá. Mas não. Hoje essa raiva está confusa e tonta, precisa de saturação. Essa raiva só me permite encostar a língua na sua, chupar seu lábio e depois ir embora.

— Eu sei que você me ama — engulo em seco, sem querer desviando o olhar a cada segundo. — Eu também te amo. Mas às vezes te amar é machucar meu amor próprio.

E saio pela porta do escritório.

crises et chocolat  ✰  Nosh  ❖  Now UnitedOnde as histórias ganham vida. Descobre agora