nós dominamos tudo

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Duas semanas usando o adesivo e tenho ido bem. Não toquei uma vez sequer num cigarro e eu ainda tenho que me livrar de todos. Preciso esvaziar os bolsos das minhas roupas — sobretudo as jaquetas —, gavetas e cantos da casa. Só que algo em mim diz que ainda é muito cedo. Preciso de mais tempo. Só preciso de um mês olhando os cigarros e depois me livro de todos eles.

Ultimamente tenho me esbaldado em doce. Ontem Daniel foi ao casamento da prima e me trouxe uma vasilha cheia de bolo. Como hoje estamos sentados no fundo, eu estou comendo bolo escondido do professor na sala de aula. Ah, pelo amor de Deus! Última aula do semestre, quem se importa com isso? Daqui a alguns dias estarei com a minha família, então nem vou ter como ficar saindo com Daniel. Então devo aproveitar agora.

Felizmente, o bolo está uma delícia. Ninguém nota minha cabeça abaixada. Eu coloquei a vasilha dentro da mochila e vez ou outra dou uma garfada lá dentro. Eu sou bom em fingir.

— Professor demora demais para dar as notas, não? — Daniel comenta atrás de mim, com sua voz baixinha.

— É, de certa forma. Mas eu já sei que passei. Acho que só vim na esperança do nosso artigo ter sido destaque.

Ah, sim. Esqueci disso. Terminamos o artigo semana passada e enviamos ao professor que nos orientou. Além disso, fizemos a defesa dele na banca do evento que estamos submetendo. O professor, inclusive, está dando essa aula de agora. Eu só vim na esperança de conversar com ele sobre isso. Quero saber como foi o parecer em relação a nossa produção.

Enquanto nada me interessa, eu fico olhando o céu negro pela janela. Acabo distraindo-me entre garfadas curtas e rápidas no bolo e olhares curiosos em direção às estrelas. Não consigo vê-las claramente, graças a poluição, porém alguns pontinhos brilhantes são visíveis e eu acho isso tão lindo...

— Boas festas — a voz do professor irrompe meus pensamentos. — Espero vê-los no próximo semestre!

Um burburinho de agradecimento é esguichado pelos alunos, afoitos em dar no pé o mais rápido possível. Eu tampo a vasilha já vazia e devolvo a Daniel. Apressadamente, arrumamos nossas coisas e nos juntamos à massa que está saindo da sala.

— Noah, Daniel! — o professor nos chama. — Podem ficar por um tempo?

Eu concordo com a cabeça e aproximo-me da sua mesa. Dan faz o mesmo. Quando boa parte dos alunos estão do lado de fora, o professor abre um sorriso para nós dois.

— O que acham de apresentar o trabalho de vocês no simpósio de LA? — sua pergunta me faz praticamente perder o ar.

Daniel segura meu cotovelo, como se querendo firmar-se. Eu abro um sorriso espetacular, porém incrédulo.

— É sério isso? — dou um passo para trás em puro êxtase.

Caralho, nem consigo acreditar! Todos os meus esforços, tudo... Tudo que eu achei que nunca conseguiria, de repente eu consegui? Todas as vezes que fiquei triste, que chorei por simplesmente não me achar suficientemente para conquistar algo na vida... Não era real? O que fazer agora com essa informação? Se o que eu repeti a mim mesmo por anos não condiz com a realidade (que não seria bom o suficiente, que não teria o suficiente), então... O que fazer com isso? O que fazer com toda essa informação?

— Claro que sim, Noah! — o professor remexe-se na cadeira, animadamente.

— Wow, isso é incrível! — Daniel balança meu cotovelo direito, que ainda está segurando.

— Olha, o simpósio vai acontecer no final do mês que vem — o prof vai explicando. — Acho que dia vinte quatro ou vinte e cinco. Enfim, eu digo todas as informações assim que tudo estiver confirmado. Agora, aproveitem suas férias e parabéns a vocês!

— Obrigado, professor! — agradeço com um sorriso no rosto.

— Muito, muito obrigado! — Daniel faz o mesmo que eu.

Saímos que nem dois adolescentes idiotas da sala, felizes da vida, sorrindo e dando pulinhos. Daniel, todo animado, me sacode pelos ombros. Quero pensar em como vai ser lá, mas já fico nervoso de antemão. Com que roupa eu vou? Qual tom eu uso ao explicar? Ai, meu Deus, são tantas coisas para decidir...

— Dan, a gente vai ter que fazer nosso melhor lá! — é o que digo ao cruzarmos o corredor em direção às escadas principais. — Tipo... Pensa no quanto de gente importante vai estar lá.

— Sim, nossa! Nós dominamos tudo, Noah. Se lembra daquele trabalho de Ética I? Fomos incríveis! — Daniel mexe no próprio cabelo ao descer as escadas comigo.

— Nossa, sim. Somos uma dupla fenomenal — fazemos um high five entusiasmado.

Daniel gargalha quando erramos o segundo high five e eu percebo agora que parecemos dois bestas e idiotas rindo de nada, só porque estamos felizes com uma notícia incrível.

Passamos pelo arco da frente e em seguida pelo portão. No estacionamento, andamos lado a lado conversando sobre como vai ser lá e quem iremos encontrar. Daniel jura que o próprio Friedrich Hegel estará lá para nos contemplar e eu rio só pelo fato de estarmos zoando com isso, numa vã expectativa. As coisas escapam facilmente, mas isto eu quero agarrar com força e cravar as unhas. É a minha felicidade, porra. E eu mereci cada milissegundo dela.

— Olha ali o Josh! — meu amigo chama a minha atenção para o outro lado do estacionamento.

Um rapaz bonito, não tão alto assim, encostado num carro e me olhando fixamente. Meu sorriso desce um pouco, porque ele não está sorrindo. E aproximo-me com certa lentidão.

— Oi... Posso falar um pouco com você? — Josh questiona assim que chegamos perto.

Não só está sério, ele está triste. Seus olhos estão opacos, parece que perdeu o brilho pelo caminho. Não gosto de vê-lo assim, fosco. Como se tivesse perdido tudo que mais importava na vida. E o silêncio corrói nossa energia vital.

— Eu vou indo — Daniel toca em meu ombro e abre um pequeno sorriso para o Josh.

— Tchau, Dan — aceno levemente quando ele começa a se afastar.

No instante em que Dan está longe o bastante para não nos ouvir, Josh toma iniciativa para dizer algo.

— Posso... — ele faz uma pausa, hesitante, como se estivesse pisando numa ponte de madeira com medo de vê-la ruir sob seu peso. Eu queria saber por que a porra do seu rosto está meio inchado como se ele tivesse acabado de chorar. — Posso te levar em casa?

Concordo ao balançar a cabeça positivamente, confuso.

Engulo em seco antes de entrar no carro. Ponho o cinto de segurança e espero-o fazer o mesmo. Eu não sei porque estou nervoso, só estamos em silêncio. E eu lambisco o lábio inferior para ver o tempo passar.

— Tem cobertura de bolo no canto dos seus lábios — é o que avisa-me quando liga o motor do carro.

Com o dorso da mão direita, eu esfrego os restos do bolo na minha boca. E é aí que na minha distração eu ponho os olhos nas mãos de Josh. A direita sai da marcha e para no volante. Ele está distraído, olhando o retrovisor para que possamos sair do lugar, mas só consigo pensar se o que estou vendo é mesmo verdade. E quando passamos por uma região mais iluminada, percebo que não estive errado. Tem uns três bandaids só na sua mão e pulso direito. Um no dedo do meio, outro na lateral direita do dorso e o último na lateral do pulso.

— Nossa, Josh! — exclamo, assustado. — O que houve?

— O quê?

— Você se machucou? Por que tanto dodói?

Ele vira o rosto na minha direção e, mesmo com a sombra engolindo seu rosto, noto resquícios de dor. Não uma dor externa. Algo amargo, uma angústia.

— Acabei me cortando... — resume pouco categórico.

E agora eu percebo que realmente há algo de errado pairando no nosso ar.

crises et chocolat  ✰  Nosh  ❖  Now UnitedOnde as histórias ganham vida. Descobre agora