nós fomos um ciclo

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Seus lábios estão sérios e eu estou sentindo frio. Sei que a estação é assim, mas tem algo a mais.

Há um choque, é como uma colisão. Difícil pensar nisso quando ele dirige. Difícil pensar nisso quando ele nem olha para mim.

Olho para a rua e todos estão falando do natal aqui, natal acolá, propagandas gringas roubando nossas polegadas nos mais diversos telões. Que idiota, o natal já passou faz tempo.

Um grande amor como o nosso... Um grande amor como o nosso aguenta até a neve caindo. Aguenta até a virada do ano.

Nós nunca passamos a virada do ano juntos, eu e ele. Nem o natal. Porque ousamos passar mais tempo separados do que juntos.

Preguiçosamente, a neve cai. Eu parto em milhões de pedaços, porque nem música ele pediu para eu colocar. Há um pressentimento aqui. Algo ruim.

Engulo em seco e percebo que tudo é mais gostoso no verão, quando estávamos nos beijando, quando tinha abraço forte e o suor disputava lambidas com nossas línguas no corpo um do outro.

Sei que estamos cada qual em seu tempo. Sinto que algo escapou das minhas mãos. Há um sentimento aqui. Algo ruim.

— Chegamos — sua voz está diferente do habitual, grave.

Abro a porta do veículo e prontamente desço. Não sei o que está havendo, não quero pisar no pé dele para que me diga. Apertar um band-aid sangrento traz resultados, mas consequências desastrosas.

Caminhamos lado a lado até o lobby. A lua nos encara, praticamente apedreja. Eu quero que ela me ame. Ela quer que eu a ame. O céu está fragmentado... Assim como eu.

O elevador é silencioso. Quantos verões mais irá levar para que eu entenda de uma vez por todas que é no inverno que o amor derrete e vira poça para se pisar?

Um dos seus band-aids está pintado de vermelho, ainda sangra. Não é uma metáfora, estou sendo literal aqui. Ele está sangrando.

Imagina a dor. Imagina a dor que ele está sentindo. A dor externa e a interna. É perigoso ter o coração partido.

— Posso entrar para beber água? — questiona repentinamente e eu percebo que senti falta da sua voz. Mas não há calor.

— Pode — meus dedos tamborilam o aço atrás de mim. — Só se você dizer como conseguiu essas feridas.

— Eu me cortei — ele não olha para mim, está olhando para a porta fechada do elevador. — Cozinhando.

— Três vezes?

— Três vezes.

— Por quê? Você nunca se machuca. Você é sempre preciso. Não comete erros.

Uma pequena risada anasalada preenche o ambiente. Vem dele. É curta e pouco alegre.

— Nunca cometo erros... — repete consigo mesmo, como se eu tivesse feito uma piada.

O rosto que encaro não é exatamente o mesmo rosto pelo qual me apaixonei. De perto, tudo é tão grande. Suas pálpebras, a mancha meio escura abaixo dos seus olhos e seus lábios meio desbotados.

Ele deixa o elevador primeiro que eu. Os deuses me abençoaram um dia desses, mas hoje decidiram tirar todo o meu chão. Eu desaprendi a voar.

É chave sendo arrancada do bolso da calça. Sou eu praguejando pela mão estar trêmula. Ele inquieto batendo a sola do tênis do valor do meu salário no chão. Eu abro. Nós partimos em milhões de pedaços.

— Esqueci uma coisa — vira-se repentinamente e apenas vejo seu vulto bege sumindo no corredor.

É verdade. Plutão voltar a ser planeta é a esperança de todo mundo. E isso poderia salvar o século. Mas lá vem uma guerra e eu estava em paz até trinta minutos atrás.

crises et chocolat  ✰  Nosh  ❖  Now UnitedWhere stories live. Discover now