VOLTA PARA CASA

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Entro no quarto e me encanto com a cor dos seus olhos. Azuis, mas não aquele azul límpido, um azul-acinzentado totalmente atormentado daquele momento difícil que acabou de viver.

Tento acalmá-la e analiso seus movimentos. Ainda está em estado de choque, mas acredito que ficará bem. Começo a examiná-la e ela vai me interrogando sobre o custo do hospital, a presença de Thereza, e acho melhor interromper o excesso de pensamentos, deixando claro que ela tem coisas mais importantes para pensar, por exemplo, o seu reestabelecimento. Deixo as duas se alimentando, pois a Thereza recusou-se a se alimentar enquanto a Açucena não acordasse.

Enquanto caminho até à sala dos médicos, oferecendo um tempo para ambas, já que não estou trabalhando hoje, reflito o porquê essa moça mexeu tanto comigo. No Rio de Janeiro vivenciei tantas coisas, iguais ou piores do que aconteceu com ela e que não me tocou desse jeito. Sinto uma vontade insana de protegê-la, abraçá-la e não soltar mais. Pode ser que a Thereza tenha ajudado a criar esse sentimento de proteção, ouvindo e buscando, por todos esses meses, informações sobre a moça.

Açucena ficou mais dois dias no hospital e os resultados dos exames foram todos negativos, para a felicidade de todos. Também senti um grande alívio de poder cumprir a promessa que fiz a Thereza quando encontramos a garota. Avisei a Thereza que daria alta hoje para Açucena e ela quis acompanhar. Nos corredores do hospital, Thereza me confidencia que conversou com Lúcia, mãe de criação de Açucena e ambas acharam melhor que Açucena fique sabendo da verdade quando já estiver em casa.

Entramos no quarto onde estão as duas: Lúcia, a mãe adotiva, e a filha, a tempo de ouvi-las discutindo.

— Mainha, eu estou bem. Preciso tomar um sol, não aguento mais esse lugar. Preciso de ar fresco, de sentir o vento no rosto. — Açucena, sentada na cama, está toda agitada.

— Açucena, minha filha, só o médico quem sabe disso, tenha paciência. Doutorzinho cuidando de você direitinho. muito agradecida. — A mãe dela me vê e abre um largo sorriso de agradecimento.

— Eu também estou, mainha, mas preciso voltar para minhas crianças, minha dança. — Quando seus olhos cruzam os meus, vejo que ela fica envergonhada com a minha presença.

— Bom dia, Lúcia. Bom dia, Açucena. Preparadas para voltar para casa? — Lúcia e Thereza se olham e se cumprimentam respeitosamente.

— Não acredito, doutor Leonardo, vou poder enfim pegar um sol? — Ela abre um sorriso no rosto que faz o meu peito ficar acalorado.

— Vida que segue, Açucena. Terão ainda alguns exames a serem feitos daqui quinze dias, para descartar qualquer possibilidade e também uma visita ao meu consultório daqui a um mês. Depois disso, vida normal. Claro que você terá que ir até à delegacia e sei que isso poderá ser desconfortável, mas faz parte do processo. Também terá que passar pelo psicólogo por algum tempo. — Pego os papéis que estão em minhas mãos e assino sua alta.

— Estou preparada para tudo isso, doutor Leonardo. Quero muito agradecer tudo o que fez por mim. — Sou pego de surpresa quando ela me abraça apertado e sinto todo o seu corpo colado ao meu. Hesito em soltá-la quando sinto todo o seu calor, seu cheiro, sua pele. Sinto que ela também fica impactada e demoramos um pouco no abraço.

— Também quero agradecer a dona Thereza por proporcionar esse atendimento de excelência na rede particular, estarei em dívida com a senhora. Resolvi passar uns dias com mainha, antes de voltar ao trabalho. Doutor Leonardo me deu um atestado de dez dias e vou aproveitar, não quero que as crianças me vejam assim. — Vejo no olhar de Thereza que ela está muito orgulhosa da mulher que sua filha se tornou.

Ambas arrumam as coisas e Thereza faz questão que seu motorista as leve até Jaboatão. Elas agradecem e aceitam mais essa atenção dela.

Fico com uma sensação de dever cumprido. Açucena está bem e Thereza terá a chance de conhecer sua filha. Apenas fico com um sentimento estranho quando a vejo indo embora. Ainda não sei definir o que está acontecendo comigo, mas não é algo comum. Minhas pacientes para mim, são especiais e tenho sempre um carinho por elas, principalmente as que acompanho no pré-natal. São nove meses de relacionamento antes que seus filhos nasçam. Preciso lembrar que Açucena também é uma delas e preciso esquecer o que ela está me fazendo sentir.

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