MEU PASSADO

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A cama que o doutor me emprestou é ótima. Dormi mais um pouco, levantei, tomei o café que ele gentilmente deixou preparado para mim. Que docinho de rapaz. Pego-me sorrindo, enquanto me arrumo para voltar para a casa da Thereza. O que fico intrigada é como consigo ser eu mesma quando estou com ele. Consigo colocar para fora meus sentimentos, minhas dores e meus anseios. Sinto que em sua companhia estou segura.

Quando volto para a casa da Thereza, vejo seu carro já estacionado.

— Bom dia. — Minha mãe vem ao meu encontro e me abraça forte, igualzinho a todos os abraços que me deu até hoje.

— Açucena, minha filha, estava te esperando. Desculpe não conseguir voltar ontem, tive que resolver problemas deixados após a morte do senhor Avellar e sei que o Leonardo cuidou de você enquanto estive ausente.

— Leonardo é um encanto, Thereza. Buscou-me na escola, alimentou-me e ainda teve que aturar meus medos e minhas inseguranças.

— Ele enviou uma mensagem para mim, para me tranquilizar.

— Ele é um bom moço. — Bota bom nisso. Bonito, bem-apanhado, estudado, educado, bom papo, sabe cozinhar. Parece perfeito. Será que ele também é bom de cama?

— Açucena... Açucena? — Thereza está me chamando, e nem presto atenção, divagando sobre o doutor.

— Oi... desculpa, me distraí. — Ela olha para mim um pouco séria.

— Vamos até meu quarto, quero lhe mostrar algo.

— Vamos lá. — Subimos as escadas, com a minha mãe segurando a minha mão. Entramos no quarto dela, ela vai até o closet e pega uma caixa com um cadeado.

— Senta aqui, filha. Essa caixinha é tudo que consegui guardar de uma época muito louca e muito boa da minha vida. Foi quando conheci seu pai e de quando estive grávida. — Sentamos na cama dela e ela destranca a caixa. Dentro contêm fotos deles juntos, fotos dela grávida, bilhetes trocados e algumas joias.

— Essas fotos são do seu pai e também da época em que estivemos juntos. — Olho as fotos dele. Era um moço bem claro, loiro, olhos da cor dos meus. Olho para Thereza e de novo para a foto.

— Parece que saí uma mistura de vocês. Você falou que ele é alemão?

— Sim. Simon, seu pai, é alemão. Quando o conheci, ele estava vivendo em Recife, fugido do seu país. Eu era uma rebelde, não queria ser uma Avellar, não queria o destino de um Avellar, queria ser livre para traçar o meu próprio caminho. Simon infringiu as leis do seu país e também não queria viver de regras. Ficamos amigos e comecei a ajudá-lo a sobreviver no Brasil.

— Seu pai deve ter ficado irado com suas atitudes — comento, enquanto ela fica com o olhar parado, como se estivesse revivendo esse tempo. Coloco a mão em cima da sua para que ela saiba que eu estou ao seu lado agora.

— Ele tinha um ódio mortal de Simon. Ele achava que foi ele que me levou para o mau caminho, para a desobediência. Na verdade, nossas rebeldias juntaram forças.

— Então era só amizade entre vocês?

— Por algum tempo foi assim, depois a gente sempre estava junto e sexo foi meio que normal. Às vezes bebíamos e transávamos sem proteção. Foram poucas vezes. Comecei a sentir enjoos matinais, muito sono e desconfiei. Mesmo com dezoito anos, adorei a ideia de ser mãe, comecei a sonhar com o seu rosto, seus olhos, em como você seria. Mudei totalmente meus hábitos, voltei a estudar de verdade. Queria que você tivesse orgulho de mim — ela confidencia, e segura meu rosto, como se tivesse voltado no tempo, como se eu ainda estivesse em seu ventre e ela imaginando minhas feições.

— Até Simon estava mais centrado. Nós não funcionávamos mais com um casal, mas você era nosso bebê. Foi quando meu pai descobriu a gravidez que tudo mudou. —Nessa hora, sinto todo o turbilhão que ela viveu através do seu toque e sua rigidez.

— A primeira coisa que ele fez, foi mandar o Simon de volta para a Alemanha. Até hoje, não sei se isso realmente aconteceu e nem como meu pai fez isso. Só sei que ele sumiu sem deixar um recado sequer. Depois, ele me trancou em casa por longos sete meses. — Olho assustada para ela. — Trancada mesmo, com seguranças na porta, vigiando dia e noite. O médico de sua confiança vinha fazer o pré-natal e também veio no dia do seu nascimento. Foi feito um parto normal e foi o dia mais feliz e o pior dia da minha vida. — Thereza para de falar para respirar, como se lhe faltasse o ar nessa hora.

— Ele me deixou te pegar no colo logo após o nascimento e cruelmente disse que seria a única vez que eu teveria. Morri naquele momento, minha filha. Junto com sua partida, meu amor foi embora e só voltou a arder dentro de mim, quando te encontrei naquele bendito e maldito dia. Nossa separação e nosso reencontro foram marcados com dores e alegrias. — Uma coincidência bastante cruel.

— Obedeci a todos os mandos do meu pai daquele dia em diante. Casei com quem ele quis, fiz tudo que uma primeira-dama deve fazer, enfim, fui o seu fantoche.

— E sua mãe, nunca falou nada, nunca te ajudou?

— Minha mãe é a verdadeira vaquinha de presépio. Nunca fez uma vontade sua. Essa sim foi criada para ser mulher de político, passiva. Acredito que meu pai nunca a amou de verdade. Devia até ter várias amantes, pois nunca estava em casa.

— Que triste a sua história, mãe. — Os olhos dela se enchem de lágrimas quando a chamo de mãe. Senti vontade de mostrar para ela que eu estava ali de corpo e alma. — Sei que é um pouco difícil e até estranho, mas dona Lúcia será sempre minha mainha e você será minha mãe. Às vezes vou errar, porém, um dia estaremos tão próximas que isso será normal.

— Tenho certeza, minha filha. — Ela passa as mãos pelos meus cabelos.

— Posso fazer uma pergunta?

— Quantas você quiser.

— Qual o nome que você escolheu para mim?

— Maria Eduarda, minha Duda, minha bonequinha.

— Nome lindo, mãe — digo, sorrindo para ela.

— Também gosto de Açucena. Combina com você. Essa mestiça linda que você se tornou, forte e guerreira. — Levanto-me da cama e olho pela janela o sol que está queimando a pele.

— Agora entendo o porquê sempre fui desprendida das coisas e pessoas. Assim corajosa, alma livre.

— Puxou seus pais, meu amor. Agora vá se arrumar, vamos almoçar que vou te levar ao trabalho. — Antes de sair do quarto dela, convido-a:

— O que acha de assistir minha aula de dança na ONG hoje? — Preciso que minha mãe recupere o tempo perdido e sofrido. Nada melhor que conhecendo o meu mundo. Seus olhos brilham.

— Adoraria, Açucena. Com certeza, estarei lá.

— Vou me arrumar, então. — Caminho até ela, abraço-a e lhe dou um beijo cheio de significado. Beijo essa mulher que passou por momentos tão ruins quanto os que vivi nos últimos dias. O pior de tudo, é que ela foi vitimada pelo próprio pai.

VEM CUIDAR DE MIMWhere stories live. Discover now