Descobrindo que foi enganado.

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♦ Erik Ludwig ♦
Dirijo evitando avenidas, e quando não posso, pego as mais movimentadas para sair da cidade. Só minutos mais tarde na autoestrada percebo que ainda estou usando a balaclava e a arranco da cabeça, sentindo-me mais livre para respirar.
Vejo meus próprios olhos pelo retrovisor e observo meu cabelo, antes longo, agora raspado e cortado para me descaracterizar. Parecem menos dourados e mais claros. Suspiro antes de encarar o corpo oculto por um cobertor, inerte. Mechas de um cabelo loiro descolorido, quase branco, escapam pelas frestas.
Os últimos dez dias haviam sido tranquilos. Valentina não é muito boa em se esconder, é uma amadora tanto quanto seus sequestradores. Foi inconsequência deles terem deixado-a aos cuidados de um velho que mal conseguiria segurar uma arma, mas uma boa ideia terem-na transformado numa loira.
A garota na foto, morena, era muito diferente. Tinha um ar de inocência que a loira não possui. Eu não tinha olhado direito para ela, estava mais preocupado em sair da cidade sem ser despercebido, mas chegando ao pequeno aeroporto perto de Essen terei de movê-la de novo.
Enquanto tiro seu corpo amolecido do banco de trás, a cabeça dela cai sobre meu ombro e os cabelos longos se espalham por meu rosto. Cheiro de tintura barata e xampu masculino, mas um outro aroma natural feminino perto do pescoço. Isso acende minhas dúvidas. A casa, o emprego na livraria, o velho... E esse cheiro.
Um jatinho preto espera no meio da pista com as turbinas ligadas. A porta se abre assim que paro o carro ao lado, e o piloto sai encarando seu relógio.
Sei que não estou atrasado, e mesmo assim meus passos parecem hesitantes na direção da aeronave. Um pressentimento ruim com o peso de Valentina sobre meu ombro como um saco de batatas embaixo da neve rala.
— Quero que você a entregue pessoalmente, Erik. — Marcelo disse ao telefone dias antes. — Você é o único em quem eu posso confiar. Tenho sua palavra? Pelos velhos tempos?
Podia ignorar o pedido. Apenas deixar a pirralha dentro do avião e voltar para casa, fingir que isso nunca aconteceu.
Porém, dei minha palavra de que iria ajudá-lo a recuperar a menina. Nunca, em meus devaneios mais loucos, imaginei que Marcelo seria pai. Ele simplesmente não parecia ter o dom para isso, e a semelhança dele com o próprio progenitor com o passar do tempo incentivou minha decisão de deixar os Estados Unidos e retornar ao meu país.
Atuar do lado certo da lei, contra pessoas como Caesar Clark, e, agora, contra pessoas como meu ex melhor amigo. Eu dei minha palavra. Agora isso é tudo que me resta.
O interior do jato é confortável, limpo e bem iluminado, muito mais quente. Deixo Valentina cuidadosamente sobre uma poltrona larga de couro branco colocando o cinto de segurança em volta dela. A comissária de bordo se aproxima me perguntando em inglês e gentilmente se eu preciso de algo.
— Aspirina.
— Para ela?
— Para mim. Com vodka gelada.
Antes mesmo da porta ser fechada, o jato começa a deslizar pela pista, e após a comissária se afastar com um olharzinho sugestivo, tomo meu lugar abrindo o zíper do casaco pesado.
Tiro a pistola do coldre e uma semiautomática do suporte abaixo da costela. Começo a arrancar o velcro do colete. Fui preparado para levar chumbo grosso e achei um velho de sono pesado que nem precisei dopar.
Hesito ao fechar o cinto com um olhar de relance para a garota apagada e torta na cadeira do lado oposto do corredor. Suas sobrancelhas também estão tingidas, mas posso ver como são levemente arqueadas. Ela é bonita, e não se parece nada com Marcelo, e é bem grande para uma menina de doze anos. Talvez seja parecida com a mãe, penso.
Não paro de olhar para ela mesmo sentindo a aeronave subir, com a quantidade de sedativo que dei, ela só acordará quando estivermos perto de chegar. O velho, a casa, o cheiro... A calmaria... Repasso todos os detalhes surpreendentes da minha missão, fácil demais. Inquieto, levanto-me e vou até ela e, incerto se deveria fazer isso, afasto o cobertor trespassado ao seu corpo para examiná-la.
Com cuidado, tiro suas luvas e olho suas mãos. Nada além de uma unha quebrada, o que exclui a possibilidade de tortura. Abro seu sobretudo rosa e vejo suas roupas de frio. São tão finas, e têm aparência gasta e velha. 
Ergo uma das mangas de sua camisa e encontro uma pele alva e sem nenhuma marca além das algemas de plástico que a prendem agora pela frente. Checo o outro braço, e nada. Isso está estranho demais. Eu sabia que era inapropriado, mas eu precisava de respostas antes de começar a ficar puto.
Se estavam deixando a garota circular por Munique e até trabalhar, deveriam tê-la machucado num lugar que as roupas cobriam. Com cuidado, agarro a barra da blusa e vou erguendo-a para exibir o abdômen, e ao contrário do que penso, encontro uma barriga lisa e cintura afinada. Sem um arranhão sequer. 
Examino suas costelas e não encontro nenhum sinal de que aquela menina tenha sofrido alguma agressão. Levanto um pouco mais o tecido e sem querer esbarro num par de seios pequenos, mas redondos o suficiente para me fazer cair na real.
Essa garota é jovem, mas não é nem de longe uma criança. Deve ter pelo menos dezoito anos, e definitivamente não pode ser filha de Marcelo Clark. Mas que porra, o que foi que ele me fez fazer?
♣ ♥ ♠ ♦ Contínua no próximo capítulo. ♣ ♥ ♠ ♦
P.S: Um reencontro entre amigos pode mudar tudo, especialmente quando há uma obsessão envolvida. Marcelo, Erik e Valentina são três pessoas diferentes que terão seus destinos entrelaçados por causa de Clark. O que será que os espera nessa história cheia de emoções e surpresas? Espero que vocês gostem. Boa leitura. Paz e luz no coração de todos.

Sem EscolhaWhere stories live. Discover now