Preocupação se transforma em fúria ll. Assombrado pelo passado parte l.

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Continuação do Capítulo anterior.

♠ Marcelo Clark ♠

— Marcelo, ela precisa de soro. Pelo menos três bolsas, e já.

— Ela vai receber tudo o que precisa lá. Posso contar com você caso ela precise de alguma coisa?

— Claro. — Um aceno negativo de cabeça exibia o descontentamento de Igor.

— Ela vai ficar bem? Corre risco de desmaiar de novo? — Pergunto. — Ela aguenta a viagem? Preciso tirá-la da cidade urgentemente.

— Aguenta, mas precisa colocá-la no soro assim que chegar — determina. — O que houve com ela, Marcelo?

— Como assim?

— Uma greve de fome não vem do nada e nós dois sabemos em que tipo de mundo você vive — diz Igor, preocupado. Ele está com os braços cruzados sobre a barriga lisa. Sempre tinha sido um cara boa pinta, e continuava mesmo agora quando lhe faltava cabelo e lhe sobrava uma barba branca e rugas. Ele havia feito o pré-natal da minha mãe, me conhece desde que nasci.

— Nós só tivemos uma discussão.

Igor vai até à mesa e pega um bloco padrão do escritório, começa a rabiscar nele.

— Se vai manter a garota com você, e já recebi notícias da minha esposa de quem ela é, melhor que cuide da saúde mental dela ou só vai ter com o que se preocupar — avisa e entrega a folha a mim com sua letra ilegível. Lembro mesmo de ter cumprimentado a senhora Veltsen antes de Valentina chegar à festa. — Medicação para ansiedade, vai evitar novas crises.

— Obrigado, Igor. Vou cuidar para que isso não aconteça...

— Claro, melhoras pra ela, e juízo meu rapaz. — Igor nos acompanha até a saída e, já no banco de trás, permaneço com ela em meus braços, suando muito. Parecia estar sofrendo.

— Chefe, estamos olhando as câmeras de segurança — informa Dave no banco da frente, enquanto dirige. Erik vem no carro de apoio atrás. — Nada foi encontrado, nem mesmo o carro. A equipe está cuidando de tudo.

— Peça para serem discretos, não quero ninguém falando pelas minhas costas que minha casa não é segura — Digo entre os dentes, contendo minha fúria. — E encontre esse filho da puta!
— Pode deixar, chefe.

— Avise a Ilana sobre o estado da Valentina amanhã bem cedo, quando já estivermos em Dover.
— Sim, senhor, farei isso.

Encaro novamente o rosto adormecido de Valentina, está inquieta, trêmula.
Coloco meu paletó sobre seu corpo e cubro suas pernas com o vestido longo, ainda está febril e balbucia palavras desconexas.

— Estou aqui — sussurrei. — Você está segura comigo...

— Não me deixe sozinha... — Consigo entender e sorrio. — Erik...

♦ Erik Ludwig ♦

Seguro com força o fuzil e sinto meus dedos congelarem com o frio que entra pela janela do carro.

Penso em Valentina caindo em meus braços, como uma árvore ceifada na floresta, seu rosto pálido e os olhos revirando.

Ela está no limite, assim como eu, e minha voz interior ainda grita que a culpa do sofrimento dela é toda minha.

A neve da América não é como a neve da Europa, embora ambas sejam brancas, intensas e igualmente deprimentes.

Ela tem as formas do meu passado, de memórias que tentei me forçar a empurrar para o fundo da mente, enquanto colocava meu corpo à prova de todas as formas possíveis.

Zonas de guerra, o perigo de morrer numa terra erma, sem ser lembrado por ninguém.
Não é totalmente verdade. Marcelo lembraria. Ele o fez quando eu já me considerava morto para aquele lado do planeta e para as memórias.

Isso que ele evoca agora. As roseiras pintadas de vermelho, o som das AKs e o zumbido no cérebro de criança no quase silêncio do quarto do pânico.

Quando estávamos na mansão dele, quase verifiquei se o lugar ainda existia, como uma curiosidade mórbida que guia a vontade para uma direção moral errada consciente.

Será isso que me levou a voltar mesmo com tudo em mim me dizendo para recusar? O tempo de resposta se foi e agora eu estou preso aqui, com o fantasma dos Natais passados e uma nova figura para assombrar minhas noites:

A garota de cabelos platinados cuja prisão foi decretada por minha curiosidade mórbida. Ele a havia mostrado ao mundo como sua, agora era quase impossível se livrar.

Os carros passam da entrada que eu já conheço, rodeiam o passeio em frente ao palacete vermelho escurecido pela noite.

Sigo Marcelo para dentro da casa, a governanta vai na frente e mal me percebe dada à urgência de cuidar de Valentina.

Continuo empunhando a arma com os olhos atentos a tudo, se alguém entrou na mansão na capital, não há garantia que não pudessem invadir esta.

Pior que assistir à garota se perder, seria ser descuidado o suficiente para deixá-la morrer.
Entro no quarto principal, verifico a varanda e todas as portas, apenas por precaução, ao mesmo tempo em que Marcelo e Helga a deitam na cama.

Uma haste com uma bolsa cheia de soro a esperava, a mulher preparou a agulha e o álcool para fazer o procedimento intravenoso com muita habilidade.

— Espere lá fora — Marcelo me ordena.

Olho por alguns segundos o corpo de Valentina, ela parece mesmo um pouco mais magra e mais branca, e saio em seguida colocando-me ao lado da porta.

— Você tem deixado o chefe nervoso, é um milagre ele ainda não ter atirado na sua cara — diz Dave, encostado na parede oposta, enquanto limpa as unhas com uma faca. Minha paciência já está quase no fim.

— O que fez? Deu pra ele?

— Você deu? — devolvo a pergunta assistindo o semblante do capanga sorrir.

— Cuidado, Ludwig... Não tenho a mesma paciência que ele.

— Nem a mesma competência que eu — Rebato imóvel. — Se não tiver nada que preste para dizer, mantenha a porra da boca fechada e faça o seu trabalho. Sei como fazer o meu.
O homem se desencosta da parede e se aproxima dois passos, lembrando-me como era a vontade de atirar em alguém.

Boa índole ou não, quando se segura uma arma, seu próprio instinto te diz para acertar alguma coisa.

Marcelo já tinha sido o alvo desse impulso, Dave causaria o menor dos impactos, pressupus.
Helga sai do quarto e quebra a tensão ao olhar para mim.

— Marcelo pediu para você esperá-lo na biblioteca.

♣ ♥ ♠ ♦ Contínua no próximo capítulo ♣ ♥ ♠ ♦

Sem EscolhaWhere stories live. Discover now