Capítulo 1 - Tratado

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"Uma princesa não deve correr."

É uma regra que já me foi repetida tantas milhares de vezes que sou capaz de escutá-la ecoando na minha cabeça no mesmo tom estridente da professora de etiqueta, enquanto desvio dos serviçais carregando vasos e louças para o baile de amanhã.

"Uma futura rainha deve ser sempre pontual!"

É outra regra que escuto com frequência, de meus pais principalmente.

E é por já estar uma hora e meia atrasada para a mentoria governamental que não posso obedecer à primeira regra – mesmo que meu coração esteja a ponto de sair pela boca, em protesto pelas vezes em que evitei uma derrapagem no chão liso de mármore, sem parar para descansar desde os jardins. Aturar os sermões de Thereezee é bem mais simples do que cumprir os castigos do meu pai, também conhecido como rei Aristides.

Viro à direita, no penúltimo corredor antes da Biblioteca Real. A respiração passa rasa e entrecortada entre os dentes. As panturrilhas queimam em cansaço e mais uma vez meus pés descalços vacilam no chão. Por muito pouco, consigo recuperar o equilíbrio a tempo firmando a mão na parede em vez de no grande vaso de porcelana ao lado.

O susto, entretanto, é suficiente para me fazer parar por um momento, me recostando à parede lisa. Solto a frente da saia e levo a mão esquerda ao peito, inspirando fundo. É insuficiente para estabilizar os batimentos e respiração ou diminuir o tremor nas pernas.

Já está atrasada. Não tem por que se arriscar correndo assim

A familiar voz do bom-senso sopra em meu ouvido, e solto a respiração pesadamente, num bufo. Em outras palavras: o castigo já está garantido, que diferença cinco minutos vão fazer?

Ao menos não há praticamente ninguém nesse corredor, boa parte da corte e empregados reunidos no Salão de Baile, ocupados com os últimos preparativos da festa. Rapidamente penteio o cabelo com os dedos e faço uma rápida trança, que jogo sobre o ombro – não vai durar sem um broche, mas com alguma sorte vai aguentar até que chegue ao gabinete de papai. Não há muito que eu possa fazer pela bainha do vestido oliva ou pelos pés descalços – nem sei onde perdi as sapatilhas.

Inspiro fundo uma última vez e, mesmo sem ter me estabilizado quase nada, retomo o caminho com passos largos e diretos; não mais uma corrida alucinada, mas também não um suave andar principesco.

Na última dobra para chegar ao corredor da biblioteca, entretanto, ignoro o bom-senso e volto a apressar os passos para chegar logo ao gabinete. Sinto o chão úmido apenas uma fração de segundo antes de meu equilíbrio vacilar. Estendo a mão para agarrar o primeiro borrão que vejo... ao mesmo tempo meu braço direito é segurado com firmeza.

— Senhorita, deve ter cuidado. Acabaram de passar... — A voz masculina desconhecida se interrompe com um ofego. Talvez reconhecendo que a pessoa que impediu de levar um tombo foi a herdeira ao trono.

O que menos preciso agora é de alguém se dobrando em mesuras ou me alongar em uma conversa.

— Entendi. Agradeço a ajuda. — Sem a decência de erguer o rosto, me desvencilho do suporte que a mão castanha-clara oferece... mesmo que meu coração martele num descompasso alucinado e eu não sinta qualquer firmeza nas pernas, com um estranho formigamento se espalhando como choque elétrico.

O primeiro passo quase me faz cair e, sem pensar, volto a me agarrar ao braço rijo. Ele solta uma risadinha nasalada e cerro os lábios, a mortificação escaldando meu rosto.

— Posso acompanhá-la até a porta, se quiser, Ali... Alteza. — Por breve segundo ele titubeia, como se fosse dizer meu nome, mas talvez tenha apenas a língua presa. — O chão está seguro lá.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now