Capítulo 3 - Ecos (parte 1)

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— 17 anos sem dizer uma palavra sobre esse noivado... e quando conta nem tem a decência de me encarar...

O eco da lembrança dança diante de meus olhos e o dardo voa. Mas é impossível atirar numa memória. O dardo se crava no círculo mais distante do centro.

Pelo menos acertei um dos círculos dessa vez, bufo para mim mesma, interrompendo os ocasionais resmungos ruminantes.

Atiro outro.

Apenas um círculo mais próximo, do outro lado.

Com a mão direita, tateio a mesa redonda, procurando... Mas, em todas as direções, só esbarro em lâminas frias. Baixo o olhar para a mesa, franzindo a testa e boca.

Já atirei todos os dardos. Na mesa, há apenas dez facas de arremesso e um punhal que pertenceu ao Axl. As lâminas brilham, implorando serem atiradas, e passo o dedo ao longo do cabo avermelhado da mais próxima. A quantidade de incidentes por segurar as lâminas de forma errada diminuiu desde as aulas que papai me obrigou a ter após eu ter aparecido em seu gabinete com os dedos machucados, há dois anos, mas ainda acontece quando me deixo levar pelas emoções em vez de me concentrar. Em geral, as deixo bem trancadas no armário, para não serem facilmente acessíveis durante um de meus rompantes de raiva, mas esqueci de guardá-las ontem à noite.

Poderia resgatar os dardos caídos, mas, misturados no chão em meio a restos afiados de vasos que atirei anteriormente, dá quase no mesmo eu segurar as facas pelas lâminas. O mar de fogo em meu peito ainda borbulha, necessitando de uma válvula de escape, mas o ímpeto mais violento de atirar ou bater em algo já não nubla a racionalidade – senão eu teria arremessado as facas sem nem pensar e só perceberia os cortes depois. Então talvez...

Não

Um vento mais frio sopra pelas janelas escancaradas e me abraço, estremecendo sob o roupão.

Às vésperas da primavera, os ventos noturnos de Thempesta continuam gelados. Retrocedo para o sofá e me jogo de costas, as pernas pendendo sobre o apoio de braço. O tremor nas mãos frias põe fim a questão de atirar ou não as facas.

Entretanto, é só ficar um minuto com o corpo parado e os pensamentos e lembranças tornam a se agitar num redemoinho corrosivo. A perna direita balança. Esfrego o rosto com as duas mãos e mordo a ponta de um polegar. Já não tenho mais vasos ou dardos a atirar se um terceiro rompante vier.

Tive o primeiro logo que entrei na suíte.

Não ter conseguido encontrar mamãe, a discussão frustrante com papai, a perturbação de Escórpio e o estresse acumulado de um mês de preparativos para um baile que nunca desejei... Tudo irrompeu assim que bati a porta. Atirei o primeiro vaso contra a parede. E então fui atrás do segundo. Não foi nem de longe o suficiente. Zanzei de um lado para outro, ruminando, enquanto meu interior girava e ecoava o som dos vasos estilhaçando. Meu peito queimava, meu sangue queimava, minhas lágrimas queimavam. O ar no quarto era insuficiente. Escancarei as janelas e a varanda. Não adiantou. O banho frio também não; os pensamentos me perseguiram sob a água. Saí do banheiro direto até a escrivaninha, vasculhando os poucos cadernos que mantenho no quarto, buscando qualquer mísera dica sobre o noivado nos estudos históricos – me certificando que de fato esconderam de mim, e não que fui estúpida demais para notar.

A última Princesa-Herdeira antes de mim foi minha avó paterna, e nunca foi mistério que seu casamento com o sétimo filho de um duque de Gardemona foi arranjo. Mas não há menção alguma de ter sido pelo Tratado. Sempre supus ter sido por linhagem ou algum tipo de apoio financeiro, motivos pelos quais os aristocratas costumam fazer tais acordos matrimoniais.

Pensar na avó que nunca conheci me angustiou ainda mais, e isto se juntou à raiva, me levando ao segundo rompante.

Papai foi fruto de um casamento arranjado. Seu próprio pai, a quem também não conheci, foi um crápula que quase afundou Thempesta durante o tempo em que governou como regente, enquanto afogava a si mesmo em álcool. Papai tem passado as últimas duas décadas para consertar os estragos, assumindo posições tão contrárias às dele e do antecessor, como se querendo provar ser o oposto deles... Mas isso não deveria se estender a uma postura diferente quanto a forma de lidar com o tratado? Não podia ter estendido a consideração que tem pelo reino à própria filha e ter me avisado com antecedência o que me espera? E quem?

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now