Capítulo 14 - Refúgio

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Apesar das lembranças turvas, ao entrar na pequena tenda tenho o estranho sentimento de familiaridade de que nada mudou.

Chandra estende a mão e um sorriso, nos convidando a sentar nas grandes almofadas sobre um tapete azul como o céu nas primeiras horas do anoitecer. Quando o fazemos, ela se abaixa diante de nós, sentando-se sobre as pernas dobradas. Os ramos secos de jasmim e alecrim, suspensos em pontos cardeais da tenda; e a lavanda queimando no incensário de prata a um canto, trazem uma atmosfera de conforto...

Ainda assim, o coração martela na garganta.

A brisa de morangos entra junto com o lintera, e me acaricia os cabelos com seus dedos finos.

Relaxe

O lintera ocupa sozinho um lado da tenda quando passa para trás de Chandra, acomodando-se como encosto. Ela sorri e faz um breve afago no felino. Então despe as luvas, tão finas e translúcidas quanto segunda pele.

— Se tiverem alguma questão, a mentalizem. Do contrário, o conselho será muito geral — avisa, estendendo as mãos para nossas testas. — Inspirem fundo três vezes e, se quiserem, podem fechar os olhos.

Me ancoro com mais força à mão de Hector e atendo à instrução, fechando os olhos.

Como se caísse em meu porão, todas as questões que estive à muito custo tentando ignorar, avançam sobre mim, feras esfomeadas por respostas. A maior e mais agressiva sendo: qual caminho é menos arriscado, em que abismo devo pular?

Com murmurado pedido de licença, Chandra pousa o polegar entre minhas sobrancelhas enquanto os outros dedos se apoiam na têmpora esquerda. Um formigamento cálido se espalha.

— Não se assustem: irão ouvir minha voz de forma diferente — anuncia num sussurro.

"Sua encruzilhada não está em um desfiladeiro, mas sim, numa sombria sala de espelhos."

Apesar do aviso, estremeço de surpresa quando a voz etérea, como brisa noturna, preenche minha mente, mais vívida e suave do que o bom-senso ou a torre, disparando arrepios de eletricidade.

"... muitas pendências e decisões do passado se encontram em novos contextos e rostos. Entretanto, as decisões e algozes do passado, são do passado. E, por mais que reflexos delas ainda se vejam no corpo e sentimentos, é no passado que devem ser deixadas para não se tornarem repetições do presente e culpas do futuro. Pediu uma nova chance, e ela lhe foi concedida. Um novo teste. Muitas vozes a aconselham como prosseguir dessa vez, mas nem todas merecem ser ouvidas... assim como numa sala de espelhos nem todos os reflexos condizem com a realidade, mesmo que reconheça sua imagem refletida. O que não quer dizer que deva virar o rosto. Negar conhecer as partes de si que não a agradam ou envergonham a torna mais vulnerável. Faça as pazes com sua sombra e encontre sua verdadeira imagem... quem quer ser... entre as tantas versões que enxerga. Essa procura leva tempo e tem seus riscos, sim, mas não existem caminhos sem riscos. E apenas você pode decidir quais está disposta ou é capaz de enfrentar. Mais importante do que saber qual caminho, é entender o porquê; é o que a fará continuar percorrendo a estrada escolhida. E é a única forma de sair da sala de espelhos, desse ciclo de repetições espelhadas. Só você pode fazer essa escolha, mas não significa que esteja sozinha. Quando estiver perdida, uma bússola lhe será oferecida e o vento apontará a direção... até nos lugares mais desolados é possível encontrar um refúgio seguro, se pedir ajuda."

O formigar cessa.

Reabro os olhos, piscando atordoada com as palavras que rodopiam em minha mente como a fumaça dos incensos.

— Parecia um eco na cabeça... — Hector murmura, pestanejando, até mais confuso que eu. — Foi diferente da última vez. Nem sabia que esse tipo de... transmissão... era possível...

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now