Capítulo 15 - Resto

89 9 14
                                    

Hector engasga com o suco, quase derrubando a garrafa no lago.

Volta-se para mim de olhar arregalado.

— Fugir para onde?

— Não sei ainda.

— Em geral, as pessoas não levam o noivo quando planejam fugir de um casamento... — comenta, mas o gracejo é arruinado pelo piscar atordoado.

Reviro os olhos.

— Não estou fugindo de você, é só... do resto.

— Ah, que alívio — murmura. Então, com inclinar de cabeça e sobrancelhas, emenda: — Qual resto?

— O resto. — Encolho os ombros, balançando os pés na água para não permitir formar reflexos. — A corte. A coroa. A responsabilidade sobre a vida de todas as pessoas que posso arruinar se-

— Espera, espera, espera! — Hector interrompe, tirando a perna direita d'água e a dobrando para poder se virar e me encarar, ainda confuso, mas com seriedade, segurando minhas mãos. — Há quanto tempo pensa nisso? O baile não pode ter sido o único motivo...

Nego com breve meneio, apertando os lábios, perdida entre o chumbo de preocupações que entope meu peito.

Não fique segurando. Tudo bem, apenas fale

O bom-senso sussurra, como brisa suave. Ao mesmo tempo, Hector sobe a mão direita para meu rosto, virando para si. E seus lagos de chocolate transmitem o mesmo incentivo tranquilo.

— Faz tempo, na verdade. Especialmente desde que a coroação foi adiantada. Mas nunca fiz um plano concreto e nem tinha qualquer ideia de para onde ir ou como, então fui adiando... — suspiro, por fim, tirando uma perna d'água para poder virar para ele. — Até que, anteontem, Escórpio me abordou na biblioteca propondo uma fuga para fora da Ilha.

— Para fo... o quê? — Hector ergue as sobrancelhas. — Então eu estava certo sobre o interesse dele em você? Quem diria que Escórpio proporia algo tão passional, sendo que-

Bufo um riso debochado.

— De acordo com ele, é por sermos parecidos, já que nenhum de nós queria ser herdeiro e por isso temos objetivos em comum.

— E acredita nisso?

— O pior é que sim — admito com uma careta, relembrando a amargura e ressentimento escorrendo das palavras e refletido nos espelhos de obsidiana. — E mesmo que tenha recusado a proposta, continua rondando na minha cabeça desde então. Somado com tudo o que aconteceu naquela noite... discussão com meus pais, Gustav, os boatos... me peguei pensando porque continuar aqui...

— Naquela noite imaginei que sua tensão fosse apenas pelo noivado — suspira, afagando com cuidado o pequeno arranhão na lateral da mão esquerda, provocado pela taça. — Quando foi para a sacada, só não a segui porque não nos falávamos há tempos e senti que iria piorar seu estado... então esperei que alguma amiga sua fosse até lá...

Faço um muxoxo autodepreciativo.

— Ficaria esperando eternamente.

— Em todo esse tempo, não fez amizade com nenhuma das damas? Por quê? Não é possível que todas sejam irritantes — surpreende-se.

— Não saberia dizer — resmungo, fitando a mão castanha que afaga delicadamente as cicatrizes pálidas e quase invisíveis acumuladas ao longo de anos. — Quando completei catorze, a idade que as garotas vem para a corte, minha coroação foi adiantada, então nossos horários de estudo nunca coincidiam. E não é fácil conversar para descobrir gostos em comum durante o jantar, sendo ladeada por Thereezee e Annabella... — suspiro longamente, balançando a cabeça. — No fim, não faz diferença. O que aconteceu ontem... eu ter me deixado abalar tão fácil... foi apenas mais uma evidência de que esse lugar não é para mim.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now