Capítulo 35 - Rocha (parte 2)

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Não é surpresa nenhuma — para mim — quando o doutor confirma que não fraturei nada. Claro, isso não o impede de comentar sobre os riscos e frisar que, se eu preciso tanto socar algo para extravasar sentimentos ruins, que devo ao menos usar proteção adequada.

E, como acontece em todas as vezes, apenas aceno com a cabeça em concordância — sem energia para explicar que não tenho como carregar luvas acolchoadas comigo e que, mesmo se tivesse, em meio à angústia de me sentir afogar em mim mesma enquanto o meu peito queima, calçar uma luva seria a última coisa que eu seria capaz de fazer —; no máximo ecoo uns "aham" e "sei" e "farei isso", enquanto para Hector lanço um enviesado olhar de "eu avisei". Ele está aliviado pelo veredicto, mas por um breve momento, isso tremula num sorriso de sutil malícia no canto da boca e dos olhos...

Embora eu não vá cobrar a dívida hoje. Seria um desperdício, quando tudo parece pálido e com gosto de cinzas.

Já são quase oito horas quando retornamos ao palácio. Sem hesitar, sigo para o quarto enquanto Hector corre para o salão para falar com mamãe — mais cedo, quando tentou, ela já havia subido para se preparar para o jantar.

Troco o vestido com apenas algumas caretas quando o tecido roça nos machucados. Mecanicamente, coloco uma camisa de Hector, sem pressa para fugir do vestiário. A torre está silenciosa desde que saímos do bosque — não como alguém decide dar uma trégua, e mais como se nem ela consiga me alcançar.

Uma vez, ao sair do CESIT, entrei por curiosidade numa pequena galeria onde acontecia uma exposição. Lá, me deparei com um quadro de artista desconhecido: a silhueta de uma pessoa numa rocha em meio a um deserto oceânico; ondas pequenas rebentam ao redor, mas, sob a superfície calma e a rocha aparentemente segura, monstros marinhos espreitam, aguardando a subida da maré e a submersão da rocha... Ao ver essa obra, foi impossível não me conectar a ela, sentir até mais do que a pintura quis mostrar, como encarar um espelho de minha própria alma após atravessar uma tempestade emocional.

Hector me segurou na turbulência até a maré baixar e ajudou a alcançar essa rocha, mas ainda é uma segurança relativa. Não enxergo terra firme em meio ao deserto, e a qualquer momento a maré tornará a subir; até lá, sinto em algum ponto abaixo da escuridão desse mar, a torre aguardando sua próxima chance. Após tanto me debater e quase afogar, a exaustão me encharca e só o que ouço é o uivo do vento — torcendo para que em algum momento ele disperse os rastros de cinzas que impregnam em minha pele como sal.

Para facilitar essa limpeza, deixo as janelas e varanda abertas e me encolho no sofá, trazendo comigo minha cantiga de ninar. Tal como a de Alexander, é uma gravação em vez do habitual teclado de lamelas e parece dar vida à pintura retratada na caixa: uma tempestade em véspera de primavera — tem até o ruído de chuva ao fundo. E esse som, entrelaçado à melodia da flauta de bambu, traz um acalento que é como ser abraçada num dia frio. É uma canção que transborda amor e ternura. Uma canção que é também uma promessa de proteção e abrigo nos dias tempestuosos. Uma canção capaz de trazer conforto e calor mesmo quando se está à deriva numa rocha em meio a um oceano volúvel feito de gelo, cinzas e sombras. Uma canção que, se eu ainda estivesse na mais profunda escuridão, provavelmente seria capaz de me mostrar o caminho de volta...

Sempre me pergunto, ao ouvi-la, se quem a compôs tinha algum dom de Criança de Lunasol para ser capaz de transformar em notas musicais a frequência exata para acalentar minha alma... É a única possibilidade que encontro para explicar de o compositor ter conseguido transformar em pura emoção o que quer que meus pais tenham requisitado ao encomendar o presente para meu primeiro aniversário.

Assim, envolvida pelo calor da melodia e acariciada pelos dedos frios da brisa de morangos, sou capaz de ignorar as sombras que espreitam sob as ondas...

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now