Capítulo 26 - Desejo (parte 2)

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Metros adiante está o coreto principal onde o grupo de damas está se reunindo, mas parecem quilômetros.

Pelo menos uma dezena a mais de damas vieram para a corte para comparecer aos eventos da temporada primaveril e, até onde consigo discernir, há em torno de trinta espalhadas ao redor do coreto — e talvez haja algumas a mais por trás dele. A maioria são as damas que moram aqui, mas algumas que já completaram seus estudos e retornam apenas nessa época, para encontrar matrimônio ou apenas se divertir na temporada; outras, por volta dos quinze, talvez só venham em definitivo quando completarem a maioridade; há ainda o pequeno punhado de rapazes que vez ou outra também comparece aos encontros. Mas até mesmo quem frequenta a corte esporadicamente já parece estar bem entrosado na confraternização.

Risos e burburinhos e gritinhos animados flutuam até mim como dentes-de-leão soprados. Daqui, consigo enxergar os vestidos floridos e coloridos e exuberantes como se emanassem uma aura de brilho... como se eu precisasse de mais isso para me sentir completamente deslocada. Do jeito ótimo que estou, com dias sem dormir direito e vestido monocromático, se me aproximar dali, ficarei parecendo uma criatura lúgubre que acaba de levantar do túmulo — a pura encarnação do espírito primaveril.

Afora isso, sobre o que poderei conversar?

Provavelmente me perguntarão sobre o relacionamento com Hector, mas não há muito para falar à respeito — não sem arruinar a maior isca para puxar a curiosidade da corte em eventos. Nos almanaques folhetinescos, entre os capítulos de cada novela, há colunas de notícias sobre os acontecimentos e notícias mais populares do momento: novos artistas se destacando e à procura de mecenas, novidades de moda e eventos... entretanto, raramente os leio, ansiosa para ir logo aos capítulos — portanto, não estou tão inteirada dos assuntos em voga. Quanto às novelas... e se não gostarmos das mesmas? Já falhei até nesse tipo de conversa. E se até Hector me provoca por algumas das histórias de qualidade duvidosa que adoro ler, que tipo de opinião terão de mim se souberem o que leio escondida no quarto?

Vai encontrar quem também goste de ler

Talvez. E é o que tenho desejado há anos.

Já tentei puxar conversa com Brigitta quando ela me devolveu um dos almanaques, mas ela consegue me superar em constrangimento e quase teve um derrame — o máximo que consegui descobrir nesses cinco anos no esquema em que compra todos os almanaques folhetinescos para mim e, em troca, os empresto para ela, é que em geral ela só lê as histórias com romance entre mulheres. Como leio quase todas — por exceção das que contém assombrações e terror de algum tipo —, supostamente deveria aumentar minhas chances de encontrar alguém com gosto em comum.

Falar sobre seu falso romance e sobre folhetins é tudo que tem para contribuir numa conversa com suas damas? Patético

O debochado riso seco da torre faz meu estômago afundar mais e cerro as mãos. O suor escorre na nuca pelo sol da tarde, mas minha respiração é fria, úmida. Pegajosa como sombras.

Os risinhos e burburinhos flutuam até mim numa alegria sufocante.

Quantas vezes já não fiquei escondida nesse mesmo ponto, com uma vista privilegiada, me debatendo entre o desejo de me juntar às conversas leves e divertidas, aos risos e refrescos; e entre a certeza de que, ao me aproximar, a leveza findará?

É fácil prever as expressões de choque ao me verem, como ficarão nervosas para tentar me impressionar por ser a Princesa-Herdeira... então a atmosfera que deveria ser descontraída se tornará insuportavelmente formal e minha armadura começará a pesar e a tensão silenciará o bom-senso e as palavras sairão por minha boca no teor oposto ao pretendido.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now