Capítulo 17 - Espelhamento

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É custoso caminhar até a carruagem como se não houvesse um formigar gélido se alastrando, nauseante, por meu corpo. Respondo com gesto vago ao questionamento de mamãe sobre o que estive falando com Escórpio para ele se afastar daquele modo... ao menos eu acho que foi isso que ela perguntou. Só entendo o nome dele e "o quê" enquanto tropeço para dentro da carruagem.

Mal me acomodo no estofamento de cetim creme e abro a caixa-fria embutida sob o balcão que divide o banco, pescando uma garrafa d'água. Sentindo o estranhamento de Annabella do outro lado, encubro o mal-estar com impaciência, tentando abrir a maldita garrafa com mãos trêmulas.

A saliva se torna escassa a cada engolir enquanto a doçura pungente se intensifica.

Outra vez isso, não, agora não!, imploro a qualquer Face de Solluas que por acaso possa atender. Já basta o episódio em pleno jantar, há poucos dias... ter outro agora, diante de meus pais...

Não, não, não, apenas não!

Da última, fui pega desprevenida em meio ao estresse do noivado e perturbações da corte, e por não ter havido qualquer episódio em meses. Não é o caso hoje.

Forço a tampa metálica da garrafa de cristal como se fosse a invisível borda da consciência do presente.

Meus pais entram na carruagem; papai por último, fechando a portinhola. Sentado no banco diante de mim, suas pernas ocupam quase todo o espaço entre os bancos, mesmo nesta carruagem maior.

Sobressalto-me quando a mão esguia surge diante de mim, em solicitude silenciosa. Entrego a garrafa a ele de pronto, entre a surpresa e a necessidade. Em dois segundos, ele a devolve com tampa afrouxada e murmuro um rápido agradecimento.

A água fria passa direto pela garganta, quase me afogando, mas não dissipa o gosto impregnado na boca, como um xarope de todas as ervas conhecidas e desconhecidas com as quais Rosa me banhou...

... e talvez seja esse banho a única razão por qual a agonia gélida alastrada por meu peito não esteja na intensidade sentida no vestiário, após o baile; e pelo qual ainda esteja conseguindo me manter acima da superfície, segurando-me nas bordas desfocadas do presente desde que a "toxina" doce começou a ser liberada.

Discretamente, acomodo-me melhor no banco, apoiando a cabeça na parede bordô à minha esquerda, abrindo mais a janela — fingindo desinteresse em participar da conversa banal entre mamãe e Annabella, da qual só ouço burburinhos distantes e ininteligíveis.

O vento de morangos sopra em meu rosto e fecho os olhos. Respiro fundo, apertando as mãos discretamente sobre as pernas, tentando me concentrar no ar que entra e sai; no girar do anel em meu anelar — única joia, além da tiara, que pude usar para a cerimônia.

O movimento suave da carruagem e o vento no rosto intensificam a náusea.

As vozes de mamãe e Annabella e a presença casmurra de papai se desbotam e dissolvem no vento de chuva e morangos.

O formigar gélido na marca de nascença também se torna algo abafado.

O estômago gira e gira.

O coração tropeça em caminhar lento.

O vento assobia em meu ouvido e então...

Escórpio me solta de abrupto e parte para cima de Hector, que ousou atirar outro torrão de terra na cara dele e mandou me soltar.

— Aprenda a se colocar no seu lugar! — Escórpio retruca ao acertar um murro na cara dele.

Hector, contrariando qualquer noção e que Escórpio é maior, revida.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now