Capítulo 20 - Traidores

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— É o quê?!

Salto da cadeira num impulso ao ser atingido pela flecha flamejante que se crava em meu peito apertado por espinhos.

— Eles não podem fazer isso realmente, podem?! — viro para meus pais, a respiração entrecortada.

Mas eles também encaram Guilhermo, incrédulos por segundos que se arrastam pela eternidade, assim como Hector, que mal se mexe.

Então a testa de papai se crispa em vincos profundos.

— Não, não podem. É absurdo de diversas formas. Se sente, Alissa — retruca a mim e, voltando-se para Guilhermo, complementa: — Não há nenhuma via legal que justifique o embargo da consagração e ainda menos do noivado. Eles não estão em nenhuma das brechas de exceção.

— ... então existem situações em que seria possível? — Hector indaga em baixa voz enrouquecida. De sobrancelhas unidas e ombros tensos, ele segura minha mão e me puxa de leve.

Cedo ao chamado, mas sento na ponta da cadeira, os olhos fixos em meus pais e os lábios trancados, mastigando a indignação efervescente. Por que nunca avisaram dessas exceções?

— São poucas — papai exala, segurando a ponte do nariz enquanto aperta os olhos entre a exasperação e o cansaço. — Sendo prometidos pelo Tratado, a principal forma de alterar o noivo, fora uma fatalidade de saúde ocorrida antes do matrimônio, seria se um dos termos para a escolha do noivo fosse descumprido... Se Hector tiver laço consanguíneo remotamente próximo a algum membro da corte de Gardemona, com quem o acordo foi firmado na geração anterior; ou se, de alguma forma, vocês tivessem algum laço consanguíneo. Nesse caso, o noivado, e, por conseguinte, a consagração seriam anulados; além disso, receberíamos sanções pelo engano e outro noivo seria escolhido pelo Conselho dos dois reinos. Mas obviamente investigamos tudo isso quando entramos em contato com o barão e firmamos o tratado com Bérthia. Não há nada que justifique uma anulação por essa via.

— Outra forma é se o noivo ou familiar detentor do título estiver respondendo por algum processo penal ou tributário. Ainda que a infração não seja uma que nas leis de Thempesta seriam passíveis da destituição do título, seria um motivo plausível para o Conselho vetar a consagração e talvez oferecer resistência ao noivo — mamãe complementa. E, com arquear de sobrancelha, volta-se para Hector: — Não cometeu qualquer infração do gênero em Bérthia, cometeu?

— Não, senhora! — ele garante de imediato, tão ansioso que nem percebe ser uma questão retórica. Mas, comprimindo as grossas sobrancelhas numa mistura de culpa e vergonha, pigarreia, hesitante. — ... a menos que entrar numa ou outra briga conte como crime, nesse contexto...

— Houve uso de armas ou desvantagem numérica que poderia configurar perseguição? Alguém perdeu membros, sofreu danos graves ou morreu? — papai replica, em tom e expressões impassíveis.

— Nada assim, senhor!

— Então não — papai arremata, com meneio de mão, desfazendo-se da possibilidade. — Se troca de socos fosse crime, mais da metade do Conselho já estaria condenado a essa altura.

Guilhermo dá um breve riso nasalado em concordância.

— E essas são as únicas formas? — questiono. O aperto que avança para a garganta e a chama de indignação que esfria numa queimação gélida ainda não me permitem sentir qualquer alívio.

— Para anularem a consagração e o noivado, sim — papai faz outro aceno indiferente de mão. — Mas se tentarem embargar apenas a consagração, poderiam alegar que Hector a coagiu para ser nomeado.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now