Capítulo 22 - Castigo

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O mezanino da biblioteca contém vários cubículos de estudo individuais entre as estantes. No entanto, nos dois cantos extremos, há dois maiores que, por contarem com porta e lavabo particular, merecem o título de saleta. Semanas atrás, quando começou seus estudos, ofereci para ele a segunda sala — imaginando que ele fosse apreciar a privacidade para seus estudos, para poder se organizar e esquematizar como bem entendesse... assim como fiz no meu espaço.

No entanto, ele preferiu ficar na mesma sala que eu.

Parte de mim temeu momentaneamente que dividir o mesmo espaço de trabalho fosse nos gerar atritos; outra parte, temeu que ele escolheu ficar comigo como se achando que eu, de alguma forma, ficaria chateada se ele preferisse ter um espaço só para si... mas quando insinuei, brincando, se ele não enjoaria de minha presença se fizéssemos tudo juntos o tempo todo, Hector franziu a testa e me encarou como se eu tivesse batido a cabeça.

"Não. Você vai enjoar da minha?", foi a réplica dele. Não tive respostas para isso, tampouco para o argumento lógico de que seria mais fácil para ele tirar dúvidas e realizarmos os deveres se estivermos na mesma sala.

Sendo assim, a solução encontrada foi liberar parte de uma das estantes baixas — deixando apenas os livros básicos que também serão úteis para ele —, requisitar uma segunda cadeira e... traçar uma "fronteira" na mesa retangular, usando uma colorida fita adesiva — que foi violada por ambos três dias depois.

E esse quase um mês foi o bastante para provar que meus temores iniciais foram estúpidos. Mesmo que a saleta seja uma caixa de alfinetes comparada ao quarto, conseguimos facilmente nos adaptar em dividir o espaço com o outro; e sua presença consegue trazer um aconchego inusitado ao ambiente apertado.

E dividirmos a saleta me deu a oportunidade única de contemplar um lado dele que perdi por anos: o Hector concentrado nos estudos. Não que em nossa infância ele não fosse um bom aluno — Axl ajudava a absorver as lições através de brincadeiras e histórias, graças a isso, Hector tinha um ótimo desempenho e fazia os cortesões engolirem parte de suas críticas; depois, ele precisou repor os estudos preparatórios para a Academia, pausados pelo período que ladeamos a cama de Axl, e foi uma das coisas que o ajudou a lidar com o luto. Mas agora não é mero estudo por obrigação ou escape. Há um brilho determinado, uma satisfação particular quando compreende algo; quando acerta a maioria das questões que me pede para sabatiná-lo e uma determinação ainda maior para entender o quê errou... e existe algo de intensa e perturbadoramente charmoso quando ele está com as mangas enroladas, brincando com um lápis entre os dedos enquanto se debruça sobre um livro. Muitas vezes o bom-senso precisa me lembrar, com risinho cínico, que preciso voltar aos meus estudos.

Hoje precisamos lidar com os relatórios do CESIT antes de nos ocupar dos estudos de praxe. Em geral, escrever relatórios de reuniões são um tédio, mas ultimamente se tornou algo mais dinâmico, já que preciso debater com ele o que merece ou não entrar no relatório. E para ancorar minha mente por mais tempo no aqui e agora, aproveito a deixa que as necessidades do CESIT trazem para introduzi-lo em "Elaboração de Projetos e Soluções de Problemas" — algo que comecei a aprender desde os onze anos, mas somente nos últimos quatro passei a pôr em prática.

Foi uma longa e penosa estrada aprender a criar protótipos ou soluções para os problemas que papai me passava. Ele sempre me crivava de perguntas sobre o porquê eu havia decidido isso e não aquilo, testando meus argumentos a ponto de eu me sentir num tribunal — algo que suscitou diversas discussões; afinal, se ele iria questionar tudo, por que me pedia para fazer?

"Se não consegue defender suas decisões nem diante de mim sem perder a calma, como vai defender no Conselho? Sua palavra terá mais peso como rainha, mas não ache que isso basta para governar, Alissa", foi a resposta dele após eu protestar sobre reescrever um trabalho pela terceira vez. Foram meses de sermões e choros de raiva e desespero, mas, quando dei por mim, havia absorvido cada uma das perguntas irritantes a ponto de iniciar qualquer trabalho elencando todas as possíveis questões para respondê-las ao longo do projeto. Ainda assim, é claro que em todo pré-projeto haverá brechas, afinal, seria impossível eu conhecer tudo sobre tudo: de engenharias até administração de hospitais.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now