Capítulo 37 - Acordo

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Com o rosto enterrado no ombro de Hector por tempo indeterminado e o incessante afago nos cabelos, meus batimentos e respiração começam a estabilizar, até que o relaxamento traz o sono.

Hector, sentindo meu bocejo mal contido, sussurra para irmos dormir. Mal tenho tempo de concordar e ele já firma o enlace ao meu redor, me erguendo do sofá enrolada ao seu peito. Não me importaria em permanecer abraçada a ele no sofá, mas Hector provavelmente está dolorido e cansado após os exercícios da tarde e por me carregar por um longo percurso — por isso, nada comento.

Por isso, quando me acomodo na cama, com um suspiro resignado, logo pego o pequeno travesseiro para pôr entre nós...

Ainda precisam mesmo disso?

O bom-senso torna a soprar no mesmo tom risonho de alcoviteiro. Franzo a testa, perplexa com o conselho — e nem posso culpar minha crise por bagunçar a parte de mim que deveria ser a voz da sensatez, porque isso já vem acontecendo há um tempo; e é ainda mais desconcertante como, apesar de ser apenas um resquício da voz de Axl grafada em minha alma, esse tom satírico sempre faz parecer que...

— Por que está fazendo essa cara? — Hector questiona na penumbra, esticando a mão para pegar o travesseiro.

Balanço a cabeça, tentando dispersar os pensamentos.

— Meu bom-senso quebrou e virou alcoviteiro — murmuro, encarando o pequeno travesseiro, que está mais para almofada. Então, ignorando o risinho na brisa e a confusão divertida de Hector ao replicar "seu bom-senso o quê?", atiro o travesseiro para o lado. — Podemos tentar sem isso hoje? Quero que continue me abraçando.

Hector faz um som de engasgo com o ar que entra bruscamente, mas, por causa da penumbra e ele virar o rosto enquanto coça o centro do peito, não consigo discernir sua expressão. Mas, antes que possa questionar se está bem, ele volta para mim.

— Como eu poderia rercusar um pedido desses da minha general? — diz num gracejo enrouquecido, que desce reverberando por minha espinha.

O arrepio cálido, porém, se transforma numa mistura de apreensão e esperança quando nos aproximamos. Devagarinho, como se o colchão fosse uma camada de gelo sobre o lendário Lago de Nanquim; temendo que, do contrário, a frágil superfície cristalizada se despedace e nos trague para o gélido vazio das lembranças mais dolorosas — um abismo tão profundo quanto o que espreita sob o lago... Então nos alcançamos e Hector me envolve rapidamente nos braços enquanto enterro o rosto na curva de seu pescoço.

Assim ficamos: quietos, tentando "enganar" a parte mutilada em nós, para que ela não se aperceba de que estamos na cama em vez do sofá. Para que ela não reconheça a ausência do membro faltante e comece a latejar e sangrar em sua dor fantasma que nos levará ao abismo...

Então, quando me dou conta, o quarto está inundado por uma claridade cinzenta e uma batida familiar soa na porta enquanto permaneço enlaçada nos braços de Hector. Levo um tempo para entender que mergulhei num sono sem sonhos, carregada pela exaustão emocional e aconchego causado por Hector; ainda estou piscando contra a claridade e Rosa já entrou com a chave reserva e está ao meu lado, oferecendo ajuda para levantar.

No banheiro, estremeço ao ver o rosto miserável que me encara de volta no espelho: olhos e nariz ainda avermelhados, delatando o quanto chorei. Quando me banho, os punhos esfolados e os riscos avermelhados em meu colo ardem — mas com essa ardência posso lidar, estou acostumada. O que me dói mesmo é ver em Hector os rastros de minha crise violenta e em locais impossíveis de esconder.

Coloco um vestido com o decote em joia, sem mangas, complementando com luvas pretas sem dedos que cobrem tudo que devem cobrir dos punhos ao meio dos braços — mantenho uma coleção desse tipo de luvas por causa dessas situações, tal como braceletes variados para todos os vestidos sem mangas. Não são peças muito discretas, claro, mas ainda são melhores do que deixar meus machucados expostos para os urubus da corte.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now