Capítulo 18 - Consagração

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Em cerimônias no templo ou outras ocasiões solenes a tradição é que o Regente entre primeiro, seguido pelo herdeiro e, só então, por ordem etária, os consortes e infantes. Entretanto, é um dos únicos protocolos o qual mamãe não cobra por ser seguido à risca. Até onde me consta, desde o momento em que foi colocada uma coroa sobre sua cabeça, no casamento, ela entra lado a lado com papai... como Igual-do-Regente, não como simples rainha-consorte.

Sigo atrás dos dois pelo extenso corredor, o olhar adiante, no espaço entre eles, para além do altar no coração do templo. Conforme passamos, os presentes se curvam nos bancos semicirculares — dispostos como raios de sol emanando do altar central — e sinto, no formigamento que se propaga pela nuca, como leve puxão magnético, quando passo por Hector — na última fileira ocupada por nobres.

O banco da Família Real é o imediatamente mais próximo do coração do templo, e o alcançamos ao mesmo tempo que Mareidí — Voz Principal de Solluas em Thempesta, o posto maior de sacerdócio — vindo do corredor do outro lado do templo, precedido e seguido por dois pares de jovens acólitos de cabeças raspadas, como as Crianças de Lunasol, carregando incensários queimando uma mistura de folhas e flores de bordo-magnólia, destilando um perfume doce e amadeirado.

Mareidís não fazem reverências à Família Real. Em vez disso, recebemos um inclinar de cabeça e erguer da mão esquerda — um gesto de reconhecimento e bênção. Este Mareidí tem longos cabelos cheios que, sob a fraca luz da tarde que passa pelos vitrais transparentes da redoma no teto, fazem a bela juba grisalha se parecer um halo de luz, contrastando com o manto de seda púrpura.

Após o gesto de cortesia, Mareidí se aproxima do centro do altar circular e, com límpida voz, nem jovem nem idosa, ressoando no silencioso templo, faz a primeira benção aos presentes. Sem mais delongas, dá início à primeira parte da cerimônia, extremamente soporífica: o cântico em ladainha agradecendo a Solluas e cada uma de Suas Faces Manifestadas por todas as graças concedidas desde a Grande Separação. O cântico narra, em tom de gratidão, como Solluaria perdeu sua conexão a um dos grandes continentes e como tal separação, em vez representar o desastre que de início pareceu, foi verdadeira bênção de prosperidade numa terra grande e fértil o bastante para abastecer seu povo em suas necessidades; como sempre estivemos protegidos da ambição maliciosa e violenta que explorou e sitiou o mundo por riquezas e territórios e religiões; como, apesar de nenhum forasteiro ser capaz de encontrar Solluaria, os filhos que daqui saem, sempre conseguem encontrar o caminho de volta; e tece longos agradecimentos pelos anos de abundância de Luz, prosperidade e pacificidade...

A tempestade trovejando do lado de fora mal é escutada, embora açoite os vitrais reforçados. Acompanho as sombras de gota d'água escorrendo pelos reflexos de luz no mármore branco... a ondulação da fumaça dos incensários e braseiros de iluminação... qualquer lugar que minha vista alcance ao manter a cabeça reta, aparentando prestar atenção plena em Mareidí. Ocultando que sou incapaz de encarar por mais do que alguns segundos o altar circular sem que retalhos daquela madrugada de junho, de oito anos atrás, relampejem diante de minha vista. Passado e presente se entrelaçando e desenrolando concomitantes...

Ergo o olhar e atrás de Mareidí enxergo o caixão de Alexander, cercado de arranjos de íris e lírios brancos.

Pisco, e o caixão não está e estamos na claridade.

Pisco, e o templo está mergulhado quase todo em sombras, exceto por pontos estratégicos dos braseiros e o feixe de luz lunar que desce até Axl...

Como se já não bastasse a submersão-em-memórias!

Inspiro fundo o ar fumacento e solto devagar, num suspiro, levando a mão ao colo em gesto reflexo, mesmo que não esteja com meus amuletos.

A atmosfera no templo é igual e diferente ao Jardim-de-Luna, o cântico se torna um zumbido cercado por um silêncio presente... como se cada um dos cem vitrais ao redor do templo, mostrando espelhadas as Cinquenta Faces Manifestadas, fossem tronos nos assistindo do Reino Espiritual de Solluna... os olhos, em todas as Faces, inclusive, são marcadas por vidro transparente para simbolizar que veem através de tudo. Além disso, a fumaça suave ondula ao vento como presença flutuando pelo templo, disparando ocasionais arrepios. Mas, ao lado das presenças etéreas e disformes de fumaça branca, da sonolência induzida pela voz de Mareidí, a lembrança do velório de Alexander continua uma sombria miragem ao fundo.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now