Capítulo 39 - Fios

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Gostaria de poder dizer que não desci para o jantar após a conversa, mas que no outro dia as coisas voltam à normalidade possível.

Não voltam.

Não sou assolada por outra tempestade, não soco nada, não pioro meus machucados, Hector não precisa me ajudar a respirar... não há sequer soluços nem gritos abafados no travesseiro.

Mas só isso posso garantir.

A hemorragia em meu peito está aqui, ardendo em sua agonia familiar e imobilizante, tingindo o mundo num inverno sem cores e som. As lágrimas que escorrem são uma garoa silenciosa e persistente, que começa do nada e não tem hora para findar.

E Hector é o único capaz de entender.

Quando aparece no quarto para o desjejum, não me pergunta o porquê faltei ao jantar, não pergunta como passei a noite. Só de me olhar, ele sabe. Ao entrar e me ver ainda na cama, ele tira os sapatos e se deita comigo, puxando-me para seus braços. E nesse abraço apertado, também não preciso perguntar para entender que ele soube da conversa com mamãe.

Ele trouxe alguns livros para o quarto, e após o apático desjejum, fica lendo na cama, ao meu lado. Nem isso sou capaz. Parte de mim repete que estou apenas dando mais motivos para cochichos na corte... mas estar ciente disso não é suficiente para eu mover um músculo. Nada faz sentido para me fazer sair da cama.

Apenas existo.

E até isso dói e demanda energia.

Se eu e Hector trocamos dez frases, é muito.

Foi assim também por semanas após a morte de Alexander. Naquelas semanas iniciais após o funeral, mal conseguíamos falar ou olhar para o outro, simplesmente porque isso era uma lembrança constante de quem já não estava conosco; a proximidade fazia arder o vazio que ficou, cutucando e inflamando... até que aconteceu a confusão com Escórpio no jardim. Ver Hector machucado cutucou a parte de mim compartilhada com ele, a parte ainda inteira. A dor do vazio ainda estava lá — como ainda está — mas, enquanto eu segurava a mão dele no hospital, tivemos uma de nossas compreensões tácitas de que ficando longe do outro é que o vazio não deixaria de sangrar. Então, ele passou a ficar ao meu lado no banco sob a janela da Sala de Jogos, apenas nossos pés se tocando no silêncio e Alessor no chão ao lado... ao menos por 3 semanas.

Ao ver a corte retomar ao ritmo habitual, quase conseguia me convencer de que, se o mundo estava funcionando normalmente, então a morte de Alexander só podia ser um pesadelo — como os que eu tinha toda noite, quando conseguia pregar os olhos —; sendo assim, poderia encontrá-lo ao virar um corredor... poderia encontrá-lo a qualquer momento na Sala de Jogos, o nosso ponto de encontro após as aulas da tarde; poderia encontra-lo no jardim frontal, retornando de um encontro com Lionel... em algum momento voltaria a topar com ele pelo palácio. Hector esperava comigo — ele até comentou que algumas vezes parecia vê-lo de relance e senti-lo em algum lugar por ali... Mas então chegava a noite e íamos para os nossos quartos ... e a realidade vinha de novo e de novo.

Não éramos capazes de conversar sobre a falta de Alexander, apenas senti-la em cada uma dessas minúcias dia após dia. E isso era pior do que o funeral ou sentir o romper do fio... E de forma bem egoísta, até pior do que o período da doença — por mais angustiante que fosse acompanhar a deterioração de Axl, ele ainda estava aqui; ainda podíamos ouvir sua voz, o riso rouco, segurar suas mãos... e de repente, não havia nada. Quando corria para o quarto dele no meio da noite, me deparava com outro vazio frio.

Hector ao menos conseguia chorar.

Já eu...

Eu, que sempre fui uma chorona, não conseguia derramar uma única lágrima, por mais que as sentisse se acumular em mim. Quando, no primeiro aniversário de morte dele, enfim consegui chorar, achei que as coisas se ajeitariam; que em algum momento as lágrimas doloridas cessariam e eu poderia relembrá-lo apenas com saudades, como Rosa afirmava... Mas nisso veio o segundo, terceiro, sexto, nono ano... e o buraco nunca é fechado, as saudades nunca param de doer, e as lágrimas... De todos os mares de lágrimas que habitam em mim, o de Alexander é o mais profundo; e acreditar que todas as lágrimas vertidas nesses últimos anos seriam capazes de drená-lo é tão ingênuo quanto tentar esvaziar o oceano munida com uma unidade de conta-gotas.

Tratado de VidroOnde histórias criam vida. Descubra agora