Capítulo 28 - Capacidade

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Quando Hector afirmou que eu ficaria dolorida, fiz pouco caso, já familiarizada à dor de passar a madrugada atirando facas — esperei algo só um pouco pior, por conta do nosso jogo. Mas quando acordei... bem, é como se tivesse sido atropelada por uma carruagem-de-tração que moeu músculos que eu nem sabia da existência.

Fazia tanto desde a última vez que tive esse tipo de jogo com ele, que permiti o calor tomar canta de meus movimentos e reflexos, que havia me esquecido da sensação posterior. Também havia esquecido da sensação de ser praticamente untada da cabeça aos pés pelos cremes caseiros de Rosa, feitos com cânfora, arnica, veneno de abelha e tenho-medo-de-saber-o-que-mais.

O forte cheiro característico fez Hector dar um risinho de "eu avisei" quando, ao entrar no quarto para tomar desjejum comigo, reconheceu o aroma que era onipresente em nossa infância. Como o perfeito sonso descarado que é, ele se ofereceu para me carregar até nossa saleta; mas, apesar de uma parte traiçoeira de mim ter sido tentada por isso — tanto pela indignação por vê-lo perfeitamente bem quanto por curiosidade mórbida para ver se ele conseguiria mesmo me carregar pelo longo caminho — respondi-lhe com uma careta.

Fora do quarto, porém, contive cada contração do rosto ao sentir as fisgadas ardendo em cada centímetro do corpo. O que aconteceu no jardim já circula desde o jantar, e não posso demonstrar como a interação me esgotou; a corte só olhará para isso, ignorando que venci duas vezes — embora na segunda vez tenha sido mais porque o guarda Simas, que tinha ótimos reflexos, estava tenso demais e não ousou redirecionar os ataques para mim.

Mas não é a opinião da corte minha maior preocupação no momento.

Ontem mamãe não me passou um sermão quando nos cruzamos no jantar, mas seu suspiro exasperado e balançar de cabeça — como se dissesse "nem sei porque me surpreendo mais com você fazendo o oposto do que foi pedido" — foi uma ferroada mais dolorosa do que as fisgadas musculares. Foi difícil engolir o instinto de me encolher com a frustração interna e perguntar, com apenas um breve gesto de cabeça em direção ao papai, como ele estava. A isso, ela deu um único aceno.

Uma parcela do peso sobre mim se esvaiu num suspiro aliviado.

Papai estava melhor. Ao menos em comparação àquela tarde...

Hoje, tecnicamente, não seria um dia de mentoria. Mas, ao voltarmos do almoço, um guarda me entregou um bilhete de Bernarde informando para eu comparecer ao gabinete de papai no horário de costume. Fiz uma breve careta pela mudança de última hora em meu cronograma de trabalho e estudo, e por precisar encontrá-lo tão cedo depois de minha falta, mas não havia nada que eu pudesse fazer.

Recusei que Hector me acompanhasse até a porta, o instando a agir como um dia qualquer para não atrair mais a atenção dos nobres à espreita. Então, disfarçando como despreocupação os passos vagarosos, engolindo as fisgadas de dor e nervosismo que me pesam os músculos, entrei no gabinete.

Papai, com a cabeça baixa sobre um documento, apenas responde com um resmungado "hum" ao meu cumprimento e gesticula para eu me sentar.

Leva uma eternidade de cinco segundos até ele erguer o rosto para mim. E então ele arqueia uma sobrancelha.

Uma silenciosa inquisição.

Fingindo que meu coração não me espanca ou que o sangue não me provoca agulhadas, pigarreio e ajeito os ombros para encará-lo.

— Menti para mamãe sobre ir ao encontro com as damas e pretendia me esconder em algum canto do jardim para descansar, mas cruzei com Hector no caminho e ele me pediu para ajudar no treino, porque estavam em número ímpar. Foi isso. O resto o senhor e a corte já sabem, e estou pronta para lidar com as consequências — digo num fôlego, apertando a saia com ambas as mãos.

Tratado de VidroDonde viven las historias. Descúbrelo ahora