Capítulo 35 - Rocha (parte 1)

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Tão logo saímos da cobertura do bosque, digo para Hector me colocar no chão, não querendo atrair mais atenção do que meu estado deplorável já trará. Ele me ignora e, em vez de fazer o que peço, questiona sobre os secretos túneis palacianos. Como esgotei minhas energias para debater, apenas suspiro e oriento como encontrar a passagem e o caminho até nosso quarto entre o labirinto de túneis que seguem uma lógica própria de espaço-tempo.

Pensei que ele me devolveria ao chão quando chegássemos ao quarto, mas a única pausa que faz é para girar a manivela que chama Rosa e segue para o banheiro. Só então me permite descer, me fazendo sentar na beirada da banheira.

Não discuto nem me movo quando em passadas largas ele traz do armário a maleta de medicamentos, pousando-a no chão enquanto se ajoelha diante de mim.

— Vou limpar isso e iremos ao hospital — murmura, ignorando pela centésima vez quando repito que não fraturei nada. — Veremos isso lá.

— Será uma viagem à toa.

— Torço por isso — suspira, encharcando de soro um pedaço de gaze. — Se estiver certa, novamente estarei em dívida com você. Que tal?

A proposta — enunciada enquanto ele está ajoelhado diante de minhas pernas — é uma fagulha no mundo de cinzas em mim.

Uma pequena fagulha que aviva a suave chama que a presença dele traz... mas estarei mentindo se falar que é apenas por conforto. Quando menciona a dívida, é inevitável que uma parte de mim — talvez a parte segura de minha alma, a que também pertence a ele — recorde da última noite dividida... e que o "não-beijo" formigue em meus lábios.

— ... cobrarei isso — forço pela garganta apertada.

Um laivo de divertimento atravessa o rio de preocupação em suas íris e breve lua-crescente desponta na bochecha esquerda.

— Tenho certeza de que irá, minha general. Mas agora... — num suspiro, a preocupação retorna aos olhos, fixos em meus punhos esfolados. Com delicadeza, segura a ponta de meus dedos esquerdos enquanto avalia o estado da mão direita que, como de costume, aparenta estar pior. — Se doer muito, avise, que faço uma pausa. Não esqueça de respirar... e aperte minha mão o quanto precisar.

Ele segura minha mão com a esquerda enquanto a outra faz a limpeza. Me distraio assistindo suas mãos firmes e esguias tratando com tal suavidade as minhas que mal dá para sentir a fugaz aspereza de alguns calos; e se torna ainda mais delicado a cada estremecimento quando ele passa os antissépticos — mas ainda são menos estremecimentos do que ele esperava.

Após dois pacotes de gaze descartados ao canto, sem vestígios de sangue seco ou fresco e meu anel de noivado novamente visível, Hector ergue o rosto de testa franzida.

— Não está mesmo sentindo dor ou está se forçando a-

— Estou acostumada — murmuro, encolhendo um ombro. E, como ele continua incrédulo, suspiro e giro o pulso esquerdo, expondo a cicatriz diagonal— Um caco de vidro se enterrar em seu braço e então ser arrancado, meio que transforma sua tolerância a dor.

Seus olhos se arregalam, atônitos, e a cor da pele se esvai pela terceira vez hoje.

— Arrancar... nem deu tempo para uma anestesia...?

— Fui eu quem arranquei — pigarreio, sem-graça. O olhar de Hector oscila de meu rosto para a cicatriz, ainda mais horrorizado do que no dia em que soube dela. — Não dá para ser racional quando tem um caco enorme de vidro enterrado no braço, então só... puxei. Mas me arrependi quando o sangue começou a jorrar. E ainda levei um sermão do doutor depois que o pior passou. Está tudo bem agora, aprendi a lição.

Tratado de VidroWhere stories live. Discover now