Capítulo 19 - Inapropriado

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Viramos no último corredor para a biblioteca. Minhas passadas largas ecoam no mármore, assim como meu coração no peito. Hector, porém, com o braço entrelaçado ao meu, impede que eu vá mais rápido.

— Calma, Mimosa, se o chão estiver escorregadio, vamos os dois pro chão — graceja assim que viramos no mesmo ponto em que o atropelei há quase um mês.

Nem está atrasada. Sossegue

O bom-senso reforça, como se pudesse revirar os olhos em indulgência.

Ainda que seja verdade, que não estou atrasada dessa vez, faltam poucos minutos para isso. E hoje não é apenas uma mentoria com papai, mas uma reunião com o Representante-Chefe do Conselho Popular — a qual papai me avisou de supetão ontem para eu comparecer. Mais do que isso: é a primeira vez que meus pais me chamam para a reunião privativa entre eles e o representante, o senhor Guilhermo Kalamar. Sempre tive curiosidade em saber o que eles tanto discutem a portas fechadas nesses encontros não-oficiais e, de certa forma, sinto que esse inesperado chamado para me juntar foi uma grande prova de confiança.

Como poderia correr o risco de estragar tudo me atrasando?

E, claro, só porque estava agoniada com o horário, eu e Hector fomos surpreendidos por uma tempestade primaveril desabando perto do meio-dia, o que nos reteve no CESIT por mais tempo que o esperado. Almoçamos por lá mesmo, aguardando ao máximo possível até a chuva acalmar e ser possível atravessar até a carruagem com um guarda-chuvas — ainda assim, o cetim de tom oliva está manchado de gotas pela manga bufante e pela saia; o colete de arminho dourado de Hector, está mais ainda, principalmente nos ombros largos.

— Numa escala de um a dez, quão inapropriado está meu cabelo agora? — Hector murmura pelo canto da boca quando estamos diante da biblioteca.

Verifico com breve olhadela.

Durante a manhã inteira, Hector levou a mão aos cabelos, arrepiando-os distraidamente; mas então, como logo lembrando nosso compromisso, os jogava para trás para realinhá-los — o que não adianta muito em sua cabeleira caótica. Com os ventos e a chuva, o caos piorou de vez... embora nele aparente ser um penteado charmoso.

— Está um encanto.

Hector bufa.

— Minha autoestima agradece, mas não foi o que perguntei.

Reviro os olhos.

— Não se preocupe, a última coisa que qualquer cortesão vai reparar é no seu cabelo — resmungo pelo canto da boca, agradecendo internamente que Rosa fez uma trança de raiz hoje, senão eu estaria parecendo um gato assustado.

Hector, porém, não precisa se preocupar com isso. Mesmo com a mesquinharia esnobe da corte, a aparência dele — o estilo mais casual e o estado de caos permanente dos cabelos — apesar de gerar um ou outro comentário, não figura entre os motivos para considerarem ele inadequado de alguma forma.

Hector inclina a cabeça, compreendendo o ponto, mas a tensão em seus músculos se acentua a cada passo para a biblioteca na digna lentidão exasperante.

Em meu aniversário, ele disse que os comentários da corte não o atingem mais.

Então o declarei meu Igual.

Agora, sempre que adentramos a biblioteca, passamos perto dos nobres ou vamos para qualquer mínimo dever, sinto o nervosismo tomar seu corpo, a tensão endurecer os músculos. Mesmo que ele se esforce para se adaptar e mostrar naturalidade, raramente deixando escapar qualquer sinal de insegurança, é impossível escondê-las de mim — logo de mim, que tanto conheço tais espinhos... e fui egoísta o bastante para prendê-lo junto comigo a esse espinheiro.

Tratado de Vidroحيث تعيش القصص. اكتشف الآن