Capítulo 18 - A verdade nunca dorme

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Mon 

Eu amava Sam  e essa não era uma novidade para ninguém. Estava nos meus atos, na minha cara, em toda extensão do meu ser. Era visível para os meus filhos, para os amigos e poderia apostar que até para a escrota da mãe dela.

Devia ser por esse motivo que ela me olhava com todo desprezo velado. Pessoas como Irene conseguiam tirar o pior de mim. Eram preconceituosas, não conseguiam esconder essa face, por mais que tentassem com todas as forças.

Mas pessoas como Constanza Bragança eram piores. Era num gesto de superioridade, numa alfinetada disfarçada de elogio, num sorriso de reprovação que eram capazes de acabar com seu psicológico por inteiro.

Eu fora vacinada contra isso continuamente em minha vida. No orfanato, no meio de tantas crianças, sofri na pele a esperança de ver nos olhos daqueles casais a perspectiva de ser tirada dali e outra vez ser enganada, de forma que acabei por entender que o problema não era eu.

Nem todo mundo está preparado para receber todo amor do mundo. Uma criança tem isso, mas nem todo adulto sabe apreciar, pois perdemos essa capacidade mágica conforme crescemos.

Pode ser consequência de uma vida atribulada. Trabalho, estudos, contas, rotina, monotonia, frustrações... É difícil saber o que nos adoece, mas todos nós somos doentes de alguma coisa que não assim se classifica.

Quem é doente por conta do trabalho não sabe aproveitar a vida. Desmarca as viagens com a família, sempre acha que a melhor hora é sempre a extra e que minuto é dinheiro, portanto, não vale a pena aproveitar com uma pausa que poderia te impedir de se impregnar de um bem que passa a ser mal.

Quem é doente pelos estudos passa pelo mesmo processo, mas a diferença é que pouco se fala sobre isso. Quando tratamos da doença anterior há diversos debates que dão conta de elucidar que há um problema, mas nos estudos isso é romantizado. Passou em medicina. Estudava 18 horas por dia. Não dormia. Não saia. Não se divertia. Perdeu a namorada e adquiriu ansiedade. Conseguiu o que queria, mas terminou doente.

Quem padece de contas não padece sozinho. Torna-se o efeito colateral de uma pirâmide que só bem funciona se ele continuar girando sempre na mesma frequência. Gás. Luz. Internet. Nunca conseguiu poupar para ver o mar. Descobriu que tinha um problema nos olhos e gradualmente perdeu a visão. Não morreu, mas ficou com aquela angústia.

A rotina é a repetibilidade, diferente da automatização que é como a monotonia. Esta no livro de grande filósofo contemporâneo. Mas alguma dessas palavras chegam a ser boas? Repetir é fazer sempre o mesmo o automático é fazer sem pensar, mas no fim em ambas há o recair no lugar comum de viver o mesmo dia todos os dias e assim a vida passar tão rápido quanto um sopro. Viveu a rotina. Caiu na monotonia. Viveu sem motivação. Se aposentou sem saber do que serviu deixar seus melhores anos numa empresa.

Quem sofre de frustrações não consegue amar. Ama ao fracasso, a dor, a sua própria e a que causa nos outros, sem qualquer responsabilidade pelo que faz. O frustrado, sem querer, é narcisista, pois a ele só importa a si mesmo. Nunca conseguiu parar com ninguém. Fingiu se apaixonar a vida toda e quando percebeu que a pessoa fazia o mesmo e requeria algo fugiu. Nunca teve filhos, pois não podia se comprometer. Viveu sozinho e a culpa de todo mundo é dos outros, nunca sua.

Todas as vezes que fui desprezada eu encontrei me confiar nessas subjetivas causas. Em alguma medida tanto na minha adoção quanto no abandono do pai de Chai alguma delas foi e será verdadeira.

Doía pensar que pessoas assim chegaram na minha vida, mas doía mais ainda ver Sam  sendo refém daquilo, mas eu entendia as razões. Havia de sua parte uma carência jamais suprida apesar de ter um padrasto e uma mãe ao seu lado.

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⏰ Last updated: Oct 11, 2023 ⏰

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A família que eu herdei (Versão Freenbecky)Where stories live. Discover now