Capítulo 04 - A outra herdeira

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Mon

A morte é um processo natural da vida. Pessoas morrem todos os dias e de distintas maneiras. Pessoas ruins morrem, mas pessoas boas também porque a morte não é uma exclusividade de quem não fez o correto na vida.

A morte não conhece divisões. É a mesma que mata o branco e o preto, o jovem e o velho, o rico e o pobre, a minha mãe e o meu pai. Era estanho chamar essa palavra mesmo na minha mente, mas o fato era que eu tive um pai e a morte o levou.

Lembrava de Mauro da mesma forma como ele se aproximou. Seu jeito trêmulo que denotava mesmo ali o cansaço do seu coração, mas também com um conselho simplório num momento de angústia.

Ele era um homem bom e por isso o perdoei por não ter me contado de imediato assim que soube sobre nosso parentesco. Foi coisa de meses, depois que ele tentou me arranjar um emprego.

A ironia era que eu muito provavelmente não precisaria de um emprego tão cedo, mas isso não me trazia a felicidade que um dia achei que teria quando não precisasse me preocupar com o jantar de hoje ou a conta de água.

Eu estava triste. Triste porque comer bem num hotel caro advogado havia custado a presença daquele careca bobão na minha vida.

Lembrava-me do nosso primeiro encontro: Na praia da barra, num dia terrível ele me ofereceu uma razão para continuar. Desde ali nos conectamos de algumas maneiras e todos os encontros seguintes provocavam uma grande ternura em meu coração.

"— E você lá sabe vender, careca? — Questionei olhando-o andar a minha frente com o isopor. Ele não era mais rápido, eu só queria vê-lo em ação.

— É claro. Posso não fazer isso tem tempo, mas vender é como andar de bicicleta: Nunca se esquece — O senhor respondeu se aproximando de uma família que estava sentada debaixo de um guarda-sol — Boa tarde — Começou cumprimentando.

— Boa tarde — Responderam de forma amável.

— Eu poderia estar matando, roubando ou me prostituindo, mas estou aqui vendendo picolé na praia. Promoção para família bonita: Compre quatro e pague apenas três — Falou e quase desci a mão naquele velho safado por estar dando mercadoria de graça até perceber que na verdade tinha aumentado um pouco o valor para cobrir o último dado de "graça". Aquele homem era sagaz.

— Sorte de principiante. Só acredito se fizer de novo — Desafiei e ele foi até um rapaz e fez ele comprar ao menos três com a desculpa de que era para um remédio.

— Você está mesmo precisando de algum remédio? Eu não tenho muito dinheiro, mas se tiver faltando alguma coisa eu posso ver um meio de te ajudar — Falei tocando seu ombro com sinceridade. Ele me deu um sorriso brando de quem estava redescobrindo aquela ação depois de muito tempo. Era esquisito, mas deixava meu coração quente em causar alguma felicidade a uma pessoa como ele que parecia tão machucada pela vida.

— O meu melhor remédio é estar aqui, Mon, me sentir vivo — Ele disse e continuou caminhando com um sorriso no rosto, abordando outras pessoas com suas técnicas duvidosas, mas exitosas, de vendas...

Mauro gostava de viver. Era por essa razão que dia após dia estava naquela praia comigo. Passávamos por muitas aventuras, cada dia era um dia diferente e eu percebia que aquilo o fazia muito bem.

Quando ele não aprecia era como se o dia não fosse o mesmo. Eu ficava preocupada, me perguntava se alguma coisa tinha acontecido e só voltava a estar em paz quando o via de novo.

Cheguei a desconfiar que poderia estar sentindo algo pelo velho, mas nunca foi mais do que ternura. Eu que sempre me vi sozinha enxergava nele uma companhia agradável e de proteção e mim pensava que ele via uma garota com quem poderia contar. Houve um tempo em que ele desapareceu por quase um mês e eu quase o dei por morto ou me entristeci por ele ter se esquecido por mim.

A família que eu herdei (Versão Freenbecky)Onde histórias criam vida. Descubra agora