31º Capitulo

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A neve está salpicada de sangue, rodeando os dois corpos. O frio que nos rodeia parece inexistente devido aos intensos acontecimentos que aquecem o nosso sistema. Harry olha para mim com olhos negros, que agora temo. Contudo, transparece neles um fino feixe de preocupação, ao qual me agarro, desesperada, em recusa e negação deste seu lado, que antes desconhecia.

O que acontece a seguir é algo que transcende a velocidade da minha compreensão. Subitamente, uma pedra colide com a parte lateral do rosto de Harry. Este leva de imediato as mãos ao local da colisão, entre uma dura pedra e sua pele suave, e eu quase que sinto a mesma dor aguda que ele. O seu corpo pesado, rola para a neve, segurando o lado direito da cabeça, em dor, libertando gemidos que me apertam o coração.

Num impulso, lanço-me para o seu corpo, que se encolhe na neve, e ajoelho-me diante dele.

"Harry!" Esforço as minhas cordas vocais, que fazem uma voz, que não a minha, deixar a garganta. Esta voz desesperada, que dá a sensação de que a minha garganta está a ser arranhada por gatos furiosos, não pode ser a minha.

"Está tudo bem!” o jovem finalmente ganha forças para dizer, numa voz fraca e cansada, ainda com as mãos na cabeça. “Mas ele fugiu!"

Viro-me para trás, para ver a figura de Dave a desaparecer ao final da rua.

 E uma nova onda de lágrimas vem aos meus olhos e surpreendo-me como ainda tenho força para chorar. Deixo-me cair sobre o peito de Harold, agarrando com demasiada força a camisola de malha, que tem vestida por dentro do casaco, cerrando os punhos e mergulhando nas minhas próprias lágrimas e choro compulsivo. Mergulho numa histeria, sem me aperceber disso.

Segundos indeterminados passam, e eu começo a acalmar-me, com o calor que irradia o corpo cheio de hematomas, de Harold.

Sinto o corpo por baixo do meu mexer-se e ergo a cabeça, soluçando, mas paro o choro por segundos, para poder ver a face do rapaz que me tentou salvar.

"Vamos para dentro." Sugere. Mesmo que o tenha dito num tom suave, não consigo evitar e ver diante de mim, de novo aquele olhar negro e desumano. Contudo, faço os possíveis para o tentar esquecer. Afinal, ele queria defender-me, ainda que de uma forma demasiado violenta.

E ajudando-nos mutuamente, suportando o peso um no outro e agarrando-nos um ao outro como se a nossa vida dependesse disso, arrastamos os nossos corpos pela neve gelada, que transforma os nossos pés em cubos de gelo, até à porta. Deixamos para trás o caminho de pedra coberto de neve salpicada de sangue. Nova neve haverá de cobrir o vermelho e apagá-lo por completo. Mas nenhuma neve terá o poder de apagar isto da minha memória.

Em estado de choque, entramos dentro de casa, empurrando a porta de madeira, que range ligeiramente.

"Onde tens a mala de primeiros socorros?" Pergunto entre soluços que ainda não cessaram, desde há poucos segundos atrás.

Harry olha-me fixamente nos olhos. Os seus não transparecem emoção nenhuma, tal como me habituei, desde sempre. E no próximo instante, estou envolvida num abraço seguro, acolhedor e protetor. Escondida algures no meio dos seus braços e tronco, deixo mais alguma água ser libertada do meu corpo, mais precisamente dos meus olhos, que se encontram cansados de espremer os fluídos, que depois correm sem conhecer o amanhã pela minha face, rosada do frio e do choro.

“Tu não conseguirias matar, não é verdade, Harry?” pergunto, mais para convencer-me a mim mesma, do que para saber a verdade.

Sinto o seu peito subir e descer, lentamente.

“Não.” Expira e aperta-me mais no seu abraço reconfortante.

Após longos minutos, parados mesmo ali, perto da porta, Harry afasta-se ligeiramente, reparando que o meu choro parou e que me encontro mais estabilizada. Então, calmamente, ele retira o meu casaco e depois o seu, encaminhando-se de seguida, já descalço para o outro lado da banca da cozinha.

Glass Masterpiece || h.sOù les histoires vivent. Découvrez maintenant