32º Capítulo

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Em que consiste a vida? Numa sucessão de episódios que deixaram uma marca cravada na nossa memória, pela forma como dividiram a vida em “antes” e “depois”, fazendo de nós pessoas completamente diferentes? Ou o conjunto de todos os motivos que fizeram os nossos lábios esticar em sorrisos irradiantes? Ou será aquele objetivo banal de ter uma família e estabilidade a verdadeira essência da nossa humilde vida? Talvez será a cor vibrante dos olhos que vês todos os dias ao acordar, juntamente com a sua pele suave que dá um sentido a tua vida…

Não sei… Eu não posso julgar. A minha começou apenas há 18 anos. Na altura, nada indicava que iria ser o alvo de um psicopata. Na altura, não imaginava que me iria cruzar com este rapaz que agora segura o volante e morde o seu lábio inferior ferozmente, devorando-o sedutoramente. Na verdade, nem agora sei onde este jovem de cabelo encaracolado e olhos penetrantes, cujos lábios tive a sorte de sentir, me levará.

Obrigo-me a desviar o olhar para a estrada, reconhecendo o alcatrão que guia até a minha velha casa, onde tudo evoca a minha avó e seus hábitos conservativos. Dentro dela a minha mãe deve estar em pânico, tomando calmantes, esperando o meu regresso.

Na esquadra da polícia, contei tudo, esvaziei por completo a minha memória sobre o rapaz que tentou acabar com a minha vida. Não sei se conseguirei fazer o mesmo novamente.

Suspiro e sinto uma mão quente pousar na minha perna. Os meus olhos captam os dedos longos de Harry num gesto reconfortante, perante o qual sorrio. A sua nova forma de agir é um dos mais frescos mistérios para mim. Como todo ele, aliás.

O carro para abruptamente e eu sei que devo sair.

Vejo Harry rodear o carro, abrindo-me a porta e salto do seu Range-Rover com dificuldade.

“Queres que entre contigo?” pergunta suavemente.

Mas antes que eu possa responder, um som irrompe do bolso das calças do rapaz. Observo-o a rolar os olhos, enquanto permaneço estática a sua frente, esperando que ele atenda a chamada. Lentamente, ele ergue o equipamento diante dos seus olhos. Então, como se o mundo se virasse ao contrário, os seus olhos perdem a suavidade num ápice e substituem-na por um olhar rígido e trancado de qualquer emoção. De forma igualmente rápida, ele gira os seus calcanhares encaminhando-se para a porta do condutor.

Sigo cada movimento seu com olhos arregalados, confusos e interrogativos. Mas o que foi isto?

“Desculpa, mas eu tenho de ir.” Informa, sentando-se no carro e desaparecendo pela rua, antes que eu possa reagir. 

Sacudo a minha cabeça, perante a perceção de que, talvez, nunca descobrirei os segredos, certamente, obscuros deste rapaz de olhar hipnotizante.

Ganhando coragem com uma profunda inspiração, movo o meu frágil corpo até a velha e degradada porta da minha casa. A madeira range quando a empurro para entrar e sou logo surpreendida com dois finos braços que me envolvem no seu trémulo abraço, que eu retribuo sem pensar duas vezes.

“Oh meu deus!” chora a minha mãe “está tudo bem contigo?” soluça e o meu coração despedaça-se ao vê-la neste estado. “O que se passou aqui?”

“Calma mãe.” Respondo, massajando as suas costas e tento conter a minhas próprias lágrimas, que ameaçam desabar a qualquer momento. “Vamos sentar na cozinha e eu conto tudo, sim?” digo na voz mais suave que consigo formar neste momento e desprendo-me da minha mãe.

Ambas, com passos lentos, os meus devido a exaustão, os dela devido ao esgotamento, dirigimo-nos para a cozinha, onde nos sentamos frente a frente.

Olho-a com pena e culpa espelhada nas íris, enquanto ela apenas navega os seus olhos cristalinos por cada milímetro do meu rosto, em preocupação maternal e desmedida dor, enquanto deixo as minhas mãos serem acariciadas pelas suas - as minhas frias como a neve e as suas quentes, como os raios solares numa tarde de verão.

Glass Masterpiece || h.sOnde as histórias ganham vida. Descobre agora