CAPÍTULO 58

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Era uma festa e eu sentia que tudo estava bem, mas faltava uma coisa. Eu olhei em volta, o refeitório estava cheio, Honest era abraçado e todos queriam conversar um pouco com ele, mas eu via que ele e eu sentíamos o mesmo: a falta de Simple.
Eu não sei como eu podia gostar tanto daquele filhote, mas era isso, eu achava até que não havia o que comemorar, afinal ele não estava ali.
"Wide, essa é Kit." Breeze disse, eu me virei e dei de cara com uma fêmea muito bonita, ruiva de olhos verdes e felina. Olhos que eu já tinha visto. Ninguém esquece olhos como aqueles.
"Kit?" Eu a encarei, ela sorriu.
"Sim. Esse é o meu nome. Acho que já conhece minha filhote, Ann Sophie?" Ela apontou Ann Sophie do outro lado do grande salão conversando com Gift.
"Sim, Kit, eu a conheço. Na verdade, meu... Amigo Harry tem um certo interesse nela, acha que ele teria chance?" Eu perguntei, era melhor guardar as coisas que eu sabia para mim. Simple dizia que eu poderia ajudar muito na construção de um registro familiar deles uma vez que eu fui um dos primeiros, mas eu preferia não me meter.
"Harry? Tem certeza?" Ela disse e olhou para Breeze as duas se comunicaram com os olhos.
"Harry é bonito e descomplicado. Ele é bem famoso entre as fêmeas." Breeze disse, Kit assentiu.
"Sim. Calado e há um mistério naqueles olhos lindos. Nossa, Bree! Poderia dar certo! Vem!" Kit saiu arrastando Breeze, ela me sorriu e cada centímetro que ela ia se afastando me incomodava, mas já que ela terminaria a noite comigo num quarto sobre uma cama, eu podia deixá-la vagar pelo salão.
"É doloroso?" Eu ouvi a voz de Vengeance, mas era Noah quando eu olhei para a esquerda.
"Não, eu não diria doloroso, dá uma ansiedade, eu tenho vontade de ficar segurando suas mãos." Eu respondi, ele assentiu.
"Como papai, veja." Ele apontou para Vengeance e Marianne, a senhora professora, como Broad a chamava. Vengeance segurava uma grande mecha de cabelo negro dela.
"Por que a pergunta? Você tem receio de se vincular?" Eu perguntei.
Eu estava vinculado? Eu me perguntei, mas sim eu estava e tinha chegado a hora de encarar isso.
"Não, eu persigo isso na verdade. Eu quero, eu me sinto incompleto, eu sinto que se me vincular o peso das visões será menor." Eu balancei a cabeça com pena dele. Eu o arrastei para fora, para respirarmos um ar mais puro, ele parecia cansado e preocupado.
"E tem alguém em vista?" Ele inspirou, ficou um pouco em silêncio, eu esperei.
"Não. Adam e Chimes conviveram por anos aqui e nunca se aproximaram. Agora ele se vinculou de tal forma que rosna pra mim se ela me olha. Ele tinha de rosnar pra ela!" Ele disse, eu sorri.
"E se eu te disser que já conhecia Breeze?" Eu disse, ele me encarou. Eu mergulhei no azul claro daqueles olhos tão frios que te enlouqueciam se você olhasse por muito tempo. Eu meio que enlouqueci pelo tempo que 'cobri' aquela fêmea.
"E não tinha se vinculado?" Ele perguntou e eu voltei a pensar nisso. Por que eu tinha pensado, é lógico.
"Eu vi muitas coisas em Mercille, Noah. Até me jogarem naquele hospital psiquiátrico, que foi onde Simple me achou, eu fiquei de instalação em instalação. E vi muita coisa. Muitas fêmeas serem mortas por exemplo." Ele se afastou, eu pensei se era mesmo para continuar contando. Mas eu estava certo em contar para ele, Noah era durão. Adam só tinha a cara fechada, Noah tinha um coração duro. Não mau, mas duro.
"E eu vi quando ela nasceu. Breeze tem sessenta anos. Ela e outras nasceram de um único lote de caninas, o lote 74. Seus números eram uma mistura de sete e quatro, todas tinham o sete e o quatro." Eu disse.
Uma das primeiras coisas que me chamaram a atenção nas instalações era como eles nomeavam os produtos, que eram como nos chamavam.
Foram criados algumas centenas de Novas Espécies então os primeiros números poderiam ser da centena de ordem de nascimento, a maioria era o dois e o quatro. Eu não sei se os primeiros cem foram morrendo ou depois de trezentos eles foram matando, e pararam nos quatrocentos, mas haviam muitos Novas Espécies com seus números começando com o dois e o quatro. E não eram só três números, era mais, mas os técnicos abreviavam e acabavam chamando um Nova Espécie pelos seus últimos três números. Como quando você nasceu em mil, novecentos e noventa e três, mas você só fala que nasceu em noventa e três.
"E você a viu crescer?" Noah perguntou.
"Não. Eu era uma espécie de cobaia para muitas coisas e usavam Broad e até Vengeance para que eu fizesse o que pediam. Seu irmão me viu matando pessoas, era o que às vezes me obrigavam a fazer. Eu nunca vi Vengeance, mas eu sentia que ele estava vivo e Broad, bom, eles me mostravam fotos dele crescendo. Eles o colocaram com Silent, foi uma alegria saber que estavam juntos. Mas eu tinha uma certa liberdade nas instalações, minha cela era aberta, às vezes para que eu tomasse sol. E no caminho até o pátio eu via os outros. Felinos, caninos e poucos primatas. E elas. Lindas e fortes. E eu ouvia quando os juntavam." Eu disse, Noah suspirou.
"Não colocavam elas para procriarem com você?" Ele perguntou, eu neguei com a cabeça.
"Não. A mãe de Broad morreu, elas eram poucas, não valia a pena. E só na primeira instalação, a que eu nasci é que sabiam de Broad. O cientista não contou para a cúpula, eu acho."
"E você a viu." Noah estava interessado em como o vínculo tinha acontecido, então eu contei:
"Sim, a vi pequena e depois numa outra feita a vi com uns dez anos, já adulta. Mas eu só registrei que era a fêmea canina do lote 74, só isso. Não houve fagulha, não houve nem mesmo desejo.
"E depois..." Ele continuou.
"E depois eu estava na minha casa, lendo quando Bravery apareceu e me levou para Fuller. Eu achei muito estranho, mas sentia muita saudade de Simple, então eu fui, entrei na cela dele e o abracei. Foi..." Eu fechei os olhos. Às vezes a fúria me tomava e eu tinha vontade de arrebentar aquela porra de prisão e tirar meu amiguinho de lá.
"É, eu posso imaginar. Você sentiu vontade de quebrar tudo." Noah disse com um pequeno sorriso no rosto. O sorriso dela.
"Sim, mas ele me encarou e disse que era para eu fazer algo para ele. Eu já fui dizendo que sim, não importava o que fosse que eu faria. Simple riu e perguntou se eu estava falando sério, eu disse que sim. Eu nunca imaginei que ele me pediria para cobrir uma fêmea." Noah rosnou.
"Esse é problema de amar esses pestinhas. Eles nos usam sem dor na consciência." Eu ri, ele riu. Era verdade, para Simple os fins justificavam os meios.
"Então, ele me disse que fosse no tal túnel e que lá eu foderia uma fêmea. Ele disse essa palavra, foder. E eu tenho honra e já fazia tanto tempo que estava celibatário, então eu topei."
Eu me lembrei de quando vi Bronzy. Da loucura que foi, eu tinha estado muitos anos preso. E sim, eu estava disposto a quebrar a coluna de Simple. Eu o amava, mas meus instintos gritaram mais alto. E se calaram quando eu vi que ela era amaldiçoada.
Talvez se eu fosse humano, poderia continuar querendo ela, mas meus instintos de sobrevivência eram superiores aos reprodutivos, eu fui perdendo o interesse. Ela era linda e única, mas eu não estava disposto a morrer por ela. Aparentemente nem Simple estava.
"E no dia seguinte eu quase tive de me amarrar para não ir atrás dela, cada hora até Bravery trazê-la de novo era uma loucura. Mas havia Broad. Eu queria que ele fosse feliz." Eu sorri.
O vínculo me impediu de deixar Breeze para Broad. Ele e ela quase que só conversaram uma vez.
Noah ia dizer alguma coisa quando Silent, Sunny e Broad apareceram. Ele sorriu.
"Bom, eu já vou. Obrigado por conversar comigo. Papai se apaixonou muitas vezes antes de mamãe, eu acho que eu devo ser paciente, só isso." Ele voltou para o refeitório, Sunny pegou meu braço e nos embrenhamos mais no mato.
Eu não gostei de me afastar, mas Sunny parecia ansioso.
"O que foi, Sunny?" Eu perguntei quando paramos.
"Me ajuda, tio! Papai é muito cabeça dura!" Sunny disse, eu olhei para Silent, ele desviou os olhos.
"Como posso te ajudar?" Eu perguntei, Broad mudou o peso de um pé para outro. Ele ainda não ficava a vontade comigo.
"Eu quero Lily! Eu a amo! Lily me ama! Mas papai..."
"Eu não, as regras, Sunny! As regras! Emma, Livie, Pride e Honor deixaram bem claro que vocês vão acasalar quando ela tiver completado dezesseis anos. É a regra." Silent disse.
Sunny olhou para mim, eu ainda não tinha entendido.
"Você é mais velho que o papai. Tio Nob manda nos irmãos dele, Tio Sim manda nos trigêmeos. Tio Adam manda em Tio Noah. Você manda em papai." Ele disse, eu ergui minhas sobrancelhas para Silent, ele baixou a cabeça.
Silent vivia sob regras e o fato de eu ser mais velho parecia que era uma regra para ele.
Sunny sorriu para Broad, Broad sorriu para mim, a idéia devia ter partido dele.
"Ok. O que quer que eu faça, Sunny?" Eu perguntei, Silent rosnou.
"E sua mãe, Sunny? Você deve obedecê-la." Ele disse.
"Eu falei com a vovó. Vovó é mais velha que a mamãe, vovó manda na mamãe." Eu sorri. Sunny era bem esperto.
"Mamãe deixou você e Lily acasalarem?" Silent perguntou com os olhos arregalados.
"Mamãe?" Eu perguntei para Broad, eu já tinha visto Silent chamar Marianne de tia Mari, ele não a chamava de mãe.
"A mãe de Emma é minha mãe." Silent me disse. Broad sorriu triste. Breeze não era mãe dele, a mãe dele morreu.
"Sim, vovó deixou. Ela vai falar com a mamãe, mas eu não vou esperar." Sunny disse e foi a vez de Broad baixar os olhos.
A avó de Sunny não deve ter entendido a história e deve ter feito como as avós faziam: diziam que sim, mas que iam perguntar para os pais.
O que significava que Sunny queria que eu ordenasse a Silent que ele permitisse que Sunny e Lily fizessem sexo. Quando a mãe de Emma fosse perguntar, ele já teria possuído Lily.
A história era meio confusa para mim, por que Sunny era adulto e Lily tinha um corpo amadurecido e eu não via por que eles deviam ser impedidos de ficarem juntos. É claro que Lily não era como Sunny e havia o perigo dela querer outro macho no futuro, diferente de Sunny que não iria querer outra. Nunca.
"Tio!" Sunny disse, eu me senti sendo colocado contra a parede.
"Pai, Sunny e Lily se amam e até Silent entende isso. Não é, Sil?" Silent me encarou e assentiu com a cabeça, ele parecia querer que eu tirasse aquela decisão de suas mãos.
"Ok. Se eu permitir que você a tome, Sunny, o que acontece?" Eu perguntei, Sunny pulou em mim, me abraçando, meu coração disparou. Eu me lembrei de quando cheguei e vi Silent jogá-lo para o alto. Ele estava menor, isso era impossível agora, pois ele tinha o meu tamanho.
"Nós quatro entramos no refeitório, eu pego Lily e corro, vocês me defendem." Eu acho que meu queixo caiu. Broad riu.
"Com medo?" Ele perguntou, eu me estiquei.
"Há mais de duzentos machos dentro daquela porra, somos fortes mas não somos super heróis." Eu disse.
"Na verdade o maior problema seria Pride e Honor. Eu não acho que papai ou meus irmãos iriam se meter." Silent disse, eu olhei para ele.
"Está mesmo disposto a isso?" Eu perguntei, ele sorriu.
"Se você mandar, eu tenho de obedecer."
"E Livie está grávida, ela não pode usar suas capacidades grávida. Ela quase perdeu os gêmeos da outra vez, não vai jogar o teto nas nossas cabeças." Broad disse.
"Pride e Honor? Só?" Eu perguntei para Silent, ele baixou os olhos.
"E talvez Quinze." Aí sim ficou interessante!
"Por que não disse logo? Vamos, Sunny, vamos pegar a sua fêmea!" Eu disse, Sunny e Broad riram.

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