Anos após a fracassada Revolução Surda, a filha de Lúcio é trazida ao Palácio para assumir seu lugar como Sacerdote, numa tentativa de conter a violenta guerra civil entre Surdos e Reformadores.
O problema é que mulheres não podem ser Sacerdotes, e...
- Agora sim, nossa mesa está completa! – Camilo ergue um cálice – Brindemos em honra à dama que veio se juntar a nós!
Todos os Auxiliadores, assim como o Sacerdote, repetem o gesto.
- Seja bem-vinda, Helena, e sinta-se em casa. Nós estamos aqui para servir e satisfazer todas as necessidades de nossa digníssima senhora e desejamos que...
- Senhora é a sua mãe.
Perplexos, os Auxiliadores se entreolham, os cálices paralisados em meia altura no ato do brinde, indecisos quanto ao que fazer.
- Desculpe?
- Senhora é a sua mãe. – Helena repete, fincando o garfo num pedaço de carne – Eu não tenho nem vinte e cinco ainda.
Apertando os lábios, Camilo pousa seu copo sobre a mesa. Os Auxiliadores o imitam, voltando a comer com a naturalidade que podem.
- A comida é boa. – ela continua a dizer entre garfadas – Melhor que a de casa. Vocês devem ter bons cozinheiros aqui, mas o pessoal da faxina pelo visto não é muito bom. Qual é a das paredes riscadas?
Ela lança a última pergunta para o Sacerdote. Pandora nada responde, encarando com imbecilidade as paredes sujas de tinta, com riscos e inscrições de ódio, pequenas lembranças da Rebelião.
- Nós ainda estamos reformando o Palácio. – Camilo mantém uma postura firme, puxando o colarinho da camisa com os dedos para respirar com mais leveza – Estava bem pior antes de o Sacerdote retornar, os Surdos vandalizaram quase tudo, e temos investido bastante tempo e recursos para restaurar os demais cômodos. Não se preocupe com as paredes, estamos trabalhando na reorganização. Tudo estará em perfeita ordem em breve, minha senhora. É uma promessa.
- Demora tanto assim para pintar uma parede? Eu faria em um dia.
Desistindo da polidez, Camilo atira um guardanapo sobre o chão, fingindo abaixar-se para pegar e aproveitando a oportunidade para sentar em sua cadeira e comer em silêncio.
- Senhora, - o Auxiliador da agricultura interrompe, sua voz baixa, buscando brechas no clima incômodo – o Palácio é mais do que um simples prédio, essas paredes nunca foram pintadas porque foram esculpidas pela própria Voz há muitos séculos. Pintá-las sem o devido cuidado seria uma grande afronta a...
- Então por que a Voz não limpou as paredes ela mesma? Pra quem esculpe pedra, tirar algumas manchas não seria tão trabalhoso.
O Auxiliador volta a pegar seus talheres, decidido a apagar de sua memória os últimos segundos de conversa.
Ela vira novamente na direção do Sacerdote, um bolo de verduras mal mastigadas aparecendo entre seus dentes:
- Você não fala nada não?
Pandora recua na cadeira, buscando ajuda no rosto de seu Auxiliador. Camilo leva o lenço à testa, removendo uma gota de suor e suspirando:
- Pelo visto teremos muito trabalho pela frente para civilizar duas criaturas selvagens...
- Boa sorte com isso. – Helena ri sonoramente, sua voz escandalosa preenchendo o salão silencioso.
Ela se levanta, jogando seu guardanapo sobre os restos de comida do prato, faz uma leve reverência e se retira sem dizer outra palavra.
Camilo apoia a testa sobre as mãos em concha.
- Que desastre...
- Não diga tal blasfêmia! – o Auxiliador do grupo da tecelagem aproxima o rosto da mesa, seus olhos amarelados ameaçando saltar das órbitas – A escolha do Sacerdote é sagrada, e certamente a Voz tem um motivo muito sábio para...
- Ela veio do seu grupo, não é? – Camilo interrompe.
O homem volta a deitar os olhos sobre o prato à sua frente, retorcendo os lábios num gesto de desgosto capaz de denunciar a resposta para todos.
- Você sabe com quem estamos lidando, eu suponho...
O Auxiliador da tecelagem balança a cabeça, a colher tremendo em suas mãos.
- Sendo assim, espero que o senhor esteja preparado para sua noite de núpcias, Sacerdote. Se já tiver terminado, peço que me acompanhe até seu quarto.
Com o corpo rígido, Pandora se levanta, saudando brevemente os Auxiliadores antes de se apressar para acompanhar o passo rápido de Camilo através dos corredores estreitos.
- Tudo está indo de acordo com o planejado. – ele comenta, sem dar-se ao trabalho de esperar por ela – Você só precisa contar para ela o seu segredinho agora, e então podemos prosseguir para a segunda fase.
Pandora estaca.
- Você não contou?!
Ele ri, coçando a nuca.
- Não é o tipo de coisa que eu poderia contar, senhor. É algo de seu interesse pessoal. Vocês sabem lidar melhor com esse tipo de coisa.
- O que ela pensa de mim?!
- O mesmo que todos pensam, que você é o Sacerdote.
Com as pernas travando de pânico, ela o segue até a porta fechada.
- Não fique desse jeito, você vai conseguir contar para ela. – ele abre a porta, empurrando Pandora para dentro – E, se não conseguir contar, ela vai acabar descobrindo logo. Boa sorte.
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