Anos após a fracassada Revolução Surda, a filha de Lúcio é trazida ao Palácio para assumir seu lugar como Sacerdote, numa tentativa de conter a violenta guerra civil entre Surdos e Reformadores.
O problema é que mulheres não podem ser Sacerdotes, e...
- Você ouviu o que eu disse. Hoje você não vai sair daqui.
Helena retorce os lábios em um sorriso de escárnio.
- Você não pode me prender aqui, impostora!
Num reflexo quase involuntário, a mão de Pandora voa para seu pescoço. Ela aperta com firmeza, empurrando o corpo largo da outra contra a parede.
- Acho que você me entendeu mal, Helena... Eu sou o Sacerdote, e aqui minha palavra é lei. Então sim, eu posso te prender aqui, e eu vou fazer isso.
- Você ficou louca! – ela ri histericamente, os primeiros traços de pânico escapando em sua voz – Eu conheço meus direitos como esposa, e sei que ninguém concordaria com isso.
O lado direito do rosto de Pandora se contrai em um sorriso maldoso:
- Essa é a parte boa de fingir ser homem numa cidade machista, Helena. Eu posso fazer o que eu quiser com você, e ninguém vai achar nada demais.
Seus olhos travam.
- O que houve com você, garota?
Pandora a solta, sacudindo os ombros.
- Eu cansei de você. Cansei de suas ameaças, de suas agressões, de seus joguinhos de me assustar. Cansei de você sair e falar com os Surdos durante a noite. Cansei de você me dando ordens. Já que sou uma impostora, como você diz, eu vou fazer isso direito.
Alguém bate à porta. Pandora a abre parcialmente, agradecendo a alguém enquanto pega algo nas mãos.
Ao fechar a porta, ela lança o conteúdo de suas mãos sobre o colo de Helena: carreteis de linhas, rolos de tecido, moldes e agulhas.
- Você é da tecelagem, não é? Eu quero meias. E é bom que sejam quentes, porque o inverno será bastante frio este ano.
Helena a encara com a boca pendendo, os olhos incrédulos.
- Não acredito que a única atitude que você está tomando em toda sua vida seja usar de sua autoridade como homem! Isso é uma vergonha para todas nós, sabia?! Você devia se envergonhar!
Pandora sorri, jogando o cabelo curto para trás num gesto nem um pouco feminino.
- E desde quando você é um exemplo de mulher livre? Você só faz o que os Surdos mandam. Vendo por esse lado, eu sou mais livre que você.
- Ah, mas não mesmo! Eu não estou obedecendo a ninguém! Eu estou lutando uma guerra!
Pandora reclina o tronco para olhar no fundo de seus olhos.
- Você está fazendo o que homens mandam, Helena.
- Temos muitas mulheres na Ordem, para sua informação!
- Você não pode saber disso. Eu sei que está inventando. Provavelmente são todos homens debaixo daquelas túnicas.
- Mesmo que sejam! Eu estou lutando por algo justo! Diferente de você, que além de ser manipulada, obrigada a se esconder e a morrer de fome, ainda faz tudo isso por um propósito torpe de destruir tudo pelo qual seu pai lutou!
Pandora paralisa no meio do gesto de abrir a porta, sua mão estendida sobre a madeira cavada por nós e relevos.
- Nunca fale de meu pai. – sussurra entredentes.
- Seu pai! – Helena explode, colocando-se de pé – O Surdo que deu origem a tudo isso!
- Cale a boca.
- Seu pai, Lúcio! O Sacerdote Caído! O grande traidor do Palácio e dos Surdos! O homem de múltiplas faces! Seu pai, impostora, seu pai! As roupas que você usa eram dele! O quarto em que você dorme era dele! Ele está aqui! Seu pai está aqui!
- Eu mandei calar a boca!
Pandora fecha a mão em punho e acerta a porta com força. Uma porção da madeira afunda com um estalo seco. As junções de seus dedos ardem, gotas de sangue se formando sobre sua pele.
- Meu pai está morto. – ela continua, sem olhar para Helena – Meu pai foi um assassino sem coração, e eu estou aqui para desfazer tudo que ele fez. Eu não me importo se estas coisas eram dele. Eu estou aqui para fazer diferente. Eu estou aqui porque preciso corrigir o monte de erros que ele cometeu.
- É por causa do seu pai que eu estou viva. – Helena rompe, sua voz trêmula com uma única lágrima que se desprende de seu olho castanho – Seu pai salvou minha vida. Saiba disso, impostora. Eu não sei se foi um erro ou não, mas ele salvou minha vida, e é por isso que eu salvei a sua.
Sem dizer uma palavra, Pandora deixa o quarto e fecha a porta.
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