46.

47 13 23
                                    

Os próximos minutos correm em silêncio enquanto Pandora permanece sentada na clareira, observando com atenção os movimentos leves de seu pai, que monta e acende uma fogueira ao centro, quase com devoção. Há uma tristeza agoniante que retorce seus lábios e o obriga a fechar os olhos e inalar profundamente a cada dois ou três minutos. Suas mãos tremem quando ele aproxima um fósforo aceso aos gravetos, apagando-o.

- Tome. – Helena diz, arremessando seu isqueiro.

Ela continua à distância, de costas para Pandora, como uma criança de castigo. Ou como uma prisioneira, aguardando seu julgamento.

- Obrigado.

O fogo finalmente acende, inundando a clareira com sua luz alaranjada e quente. Lúcio se senta diante das labaredas, sua mente perdida em algum lugar obscuro.

- Você está me machucando. – ele sussurra baixo, os olhos vidrados no fogo.

- Está falando comigo?

Como se acordasse de um sonho, ele sacode a cabeça, assustado, pressionando as palmas das mãos para esconder o rosto.

- Desculpe. Às vezes esse lugar me puxa pra longe. Se acontecer de novo me avise. Não deixe ele me levar.

- A cabeça do seu velho está mais vazia que um coco furado, impostora...

- E a minha também estaria, se dependesse de você, não é?

As duas se enfrentam rapidamente até que Helena desvia o rosto de novo.

- Ela tem razão. – Lúcio esfrega as mãos pelas laterais da cabeça – Eu sinto muito, Pandora. Se eu pelo menos tivesse minha cabeça no lugar, você não estaria aqui. Olhe só onde veio parar! No mesmo lugar que eu estive em sua idade, no meio da mesma guerra, no meio do mesmo perigo... Eu sinto muito por isso. Foi uma grande besteira.

- Se sente muito, por que concordou em deixar acontecer? Você sabia que Camilo iria me buscar, por que deixou que ele fosse? Aposto que você mesmo planejou isso, não foi?

- Eu não planejei nada disso. Eu tinha outros planos, não imaginei que ele fosse chegar antes de Alastor.

- Quem é Alastor?

- Escute... – ele ergue os dedos – Se quiser realmente entender tudo, preciso que escute desde o começo. Eu sei que Camilo te contou muitas mentiras sobre mim e sobre os Surdos, mas eu preciso que acredite em mim agora. Eu não vou mentir para você, eu não tenho nenhum interesse em te ludibriar, e também não pretendo esconder nada. Eu sou um fracassado e sei disso. Não pense que vou distorcer as coisas.

- Conte logo então!

Ele acena, contraindo a mandíbula e respirando fundo.

- Você foi um acidente, Pandora.

Helena não contém uma gargalhada alta.

- Começou bem, paizão...

- Cale a boca, Helena! Você nem devia estar aqui!

- Estou aqui porque seu pai ameaçou me matar se eu fugir.

- Então continue quieta, antes que eu mesma te mate.

- Ah, essa eu pagaria pra ver!

- Vocês duas já terminaram? – ele move os olhos insanos de uma a outra. As duas se calam instantaneamente.

- Deixe-me explicar melhor para que você entenda o que eu quero dizer com acidente. – ele observa as próprias mãos, calejadas e com cicatrizes – Olhe e veja o mundo em que vivemos... É um mundo quase completamente destruído por guerras e desastres, com gente morrendo por todos os lados para onde possa olhar. Aqui dentro temos injustiça, violência, discriminação. Lá fora temos fome, guerra e roubo. Depois de tudo que passei, depois de tudo que fui obrigado a presenciar, a última coisa que eu poderia desejar era trazer uma criatura inocente a este mundo. Eu nunca me perdoei por isso, por ter lançado você no meio dessa guerra. – Lúcio inala profundamente, o cheiro de madeira queimada ardendo em seu pulmão - Infelizmente, eu já nasci no meio dela também, e tomei parte demais nos acontecimentos para que pudesse ser ignorado. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde alguém viria atrás de mim, para se vingar ou para pedir minha ajuda, e era por isso que eu também sabia, Pandora, que eu jamais poderia ter uma família, porque minha família sempre seria um alvo.

Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionOnde histórias criam vida. Descubra agora