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As portas do Templo se fecham, encarcerando-a novamente entre os escombros das lutas do passado. Apenas um templo vazio, costumava pensar. Um templo vazio com bastante espaço para ser preenchido com mentiras...

Era assim que era, afinal. A crença na Voz havia enfraquecido drasticamente, permanecendo somente entre os Reformadores, embora tivesse certeza de que a maioria deles dizia crer na Voz com objetivos unicamente políticos. Era claro que, se existisse alguma Voz ali, o Templo jamais teria alcançado um nível tão alto de degradação.

Era só um edifício vazio e sujo, e ela entrava ali para encenar. Todos os Sacerdotes encenavam, disso já sabia mesmo antes de sua mãe lhe contar, era uma verdade que tinha sido herdada em seu sangue.

Mas ela ainda chegava a um grau de encenação pior: fingia ser homem, fingia ouvir a Voz, fingia sussurrar as palavras da Voz aos ouvidos de Camilo, que por sua vez fingia transmiti-las ao povo. E o povo, ela tinha quase certeza, também fingia acreditar em tudo aquilo.

Por que as coisas se mantinham assim? Como podia uma fraude tão óbvia, tão mal arquitetada e cheia de falhas passar pela aceitação pública como se fosse totalmente confiável? No começo, quando seu corpo estava ainda desenhado pela infância, ela podia jurar que a mentira duraria pouco. Não poderiam esconder sua voz e sua real identidade por muitos anos, certamente haveria suspeitas, e investigações, e, mesmo que não houvesse, não era possível que numa cidade inteira não existisse ao menos uma pessoa inteligente o bastante para perceber a verdade escancarada debaixo de seu nariz.

Mas a ingenuidade humana, ou a falta de vontade de manifestar inteligência, havia surpreendido suas expectativas.

A mentira e a fraude podem ser mantidas por muitos anos, e, quanto mais anos se acumulam, mais sólidas se tornam. Não era essa a história daquela cidade? Não era essa a história do mundo?

O mundo todo, pensava ela, era exatamente igual àquele Templo. O mundo todo era erguido para louvar algo que ninguém jamais havia visto. E, enquanto a maioria só observava as grandes paredes de mármore, encantadoras por sua beleza, poucos eram os que realmente adentravam o Templo para chegar perto o suficiente para ver as inscrições de ódio, o entulho e lixo acumulados durante gerações, os cadáveres daqueles que foram assassinados.

Poderia dizer que era capaz de ressuscitar os mortos, pensa enquanto caminha através da penumbra, e eles acreditariam, se tivesse alguma autoridade para lhe dar suporte.

Mas a autoridade para sustentar mentiras sempre veio dos homens, pelos homens e para os homens. Mulheres nunca tiveram o poder de ludibriar multidões porque nunca tiveram armas suficientes em suas mãos para defender sua opinião. Então mulheres eram amáveis, dóceis... Mulheres eram apenas peças num quebra-cabeças, pequenos enfeites delicados que eram revirados e analisados friamente nas mãos masculinas, movidas para este e aquele lado, expostas a diferentes ângulos de luz, pornograficamente e abusivamente destrinchadas até que a mão enorme que as segura decida fechar-se com violência e quebrá-las ao meio.

Não... Talvez mulheres não tivessem o dom da mentira. Talvez não tivessem o caráter baixo dos mentirosos. Talvez não tivessem a falta de inteligência necessária para que se acredite nas próprias mentiras e assim as transformassem em verdades.

Seu pai havia sido um grande mentiroso, isso ela tinha ouvido de diversas fontes, dos aliados e dos oponentes, o que provavelmente tornava o fato verídico. Mas ela não seria como ele.

Mulheres que mentem não saem carregando adagas pela floresta. Mulheres que mentem escondem facas em suas roupas e as sacam sobre a cama, quando as luzes estão apagadas.

Mulheres que mentem são como Helena, não mentem sob a luz do dia, esperam o exato momento para um só golpe. Esperam, escondidas sob sorrisos inocentes e vestidos rendados. Esperam até conquistarem a confiança dos outros, e por isso talvez sejam ainda piores que os homens.

Helena é perigosa, e ela deveria tomar cuidado para não se esquecer disso, por mais que um bilhete quisesse convencê-la.

Seus olhos varrem através da poeira, identificando o espaço limpo do chão, perfeitamente quadrado, onde havia encontrado o bilhete da última vez. Ela havia o deixado lá, e agora tinha desaparecido.

Seu rosto vira em todas as direções, sentindo o sabor amargo que sobe de seu estômago enquanto seu coração dispara. O bilhete não estava onde havia deixado dias antes, o que significava...

A um canto, quase invisível, enxerga algo mais brilhante.

Aperta os olhos para ver melhor, o objeto difuso tomando linhas definidas conforme entorta a cabeça. Uma folha de papel.

Ela corre para ele, erguendo-o com mãos trêmulas e mantendo os olhos apertados para conseguir ler:

CAMILO SABE SOBRE O PLANO DOS SURDOS. ELE PLANEJA TE MATAR ANTES QUE HAJA TEMPO. CORRA QUANDO OUVIR OS TIROS. ELA ESTÁ TE ESPERANDO COM A COISA DE DUAS RODAS.

Ao final, a mesma assinatura:

CÉRBERO.

CÉRBERO

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionWhere stories live. Discover now