15.

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O sol joga raios dourados sobre a cama, acendendo a figura ainda adormecida de Helena.

Observando-a, Pandora tem a impressão de ver seu cabelo avermelhado incendiar-se. Se tomasse muito sol, provavelmente o cabelo de Helena realmente pegasse fogo.

Aquela cor é o tipo de cor que atrai desastres, o tipo de cor que tinham os cabelos das mulheres que, dois mil anos antes, eram queimadas vivas por terem contratos com entidades demoníacas. Já eram poucas as mulheres que tinham essa característica natural. Hoje em dia, então, raríssimas. Somando-se aos olhos estranhamente desiguais, Helena era, de fato, uma pessoa tão única, que a própria probabilidade de sua existência já superava qualquer cálculo.

- Ficou apaixonada?

A pergunta repentina a desperta de seu devaneio. Helena já está se levantando, os olhos mais vivos que na noite anterior, e a mesma expressão sarcástica nos lábios.

- Cale a boca.

- Parece que a noite virada fez alguém amanhecer de mau humor... – ela debocha, prendendo o cabelo em uma trança única, que a transforma mais uma vez na mulher quase provinciana da cerimônia de casamento. Com suas chamas presas, Helena se tornava inofensiva.

- E então? – ela se senta na beirada da cama, encarando Pandora – Como será nossa atuação de hoje?

- Que atuação?

- A nossa. O seu papel de fingir ser homem, e meu papel de fingir que não tentei te matar ontem à noite.

- Parece mais fácil para mim do que para você.

- Certamente. Você só precisa manter sua boquinha fechada o dia todo. E eu...

- E você precisa se esconder dos Surdos.

Enquanto se olham em silêncio, o ar coagula, tornando-se mais espesso e difícil de respirar.

É como se ela estivesse longe, Pandora pensa. É como se não fosse ar, e sim vidro. Uma barreira de vidro as separando, separando o destino dela do seu destino. Elas não respiram o mesmo ar. Não vivem no mesmo mundo. São criaturas de atmosferas diferentes. Se fossem deixadas juntas num mesmo ambiente por muito tempo, uma delas acabaria morrendo asfixiada.

- Por que você se juntou aos Surdos, afinal?

A barreira se dissolve. Não é mais vidro, é ácido. E Pandora subitamente tem a certeza de que quem vai asfixiar é ela quando Helena estreita os olhos afiados.

- Não te interessa, impostora.

- Eu tenho um nome, sabia?

- Não me interessa o seu nome.

- Também não me interessa saber o seu.

Helena muda. Não exatamente ela, mas algo dentro dela. O choque transparece por seu olho azul, o ódio ainda ofuscando o olho castanho. Metade dela está exposta, a outra metade tentando desesperadamente se esconder.

- Do que está falando, sua louca? Meu nome é Helena.

- Surdos usam nomes falsos.

- Sim, mas Helena é o meu verdadeiro.

- Eu não acredito em você.

- Problema seu.

O ácido vaporizado engrossa, mas Pandora decide respirar livremente. Que a outra sufoque em seu próprio veneno, se quiser. Ela não se deixaria ser vencida pelos ataques de uma farsante.

Uma farsante como ela mesma.

- Como vai fazer para se esconder dos Surdos?

- Não sei. – a ruiva dá de ombros – Provavelmente terei que ficar debaixo do nariz de sua guarda pessoal.

- Não vou permitir.

- Como assim não vai permitir?

- Os Surdos estão infiltrados aqui, não estão?

Helena abaixa o rosto, suspirando. Havia acreditado que a garota por debaixo das túnicas de Sacerdote seria ingênua demais para se precaver, e ali estava ela, arruinando tudo.

- Está certo, você ganhou... Existem Surdos aqui dentro, está satisfeita? Mas eles não vão soltar os disfarces para me pegar, não ainda. Eles precisam de mim, mesmo que eu os tenha desobedecido. Eles não vão me matar enquanto eu ainda tiver tempo de fazer o que vim fazer. Mas podem tentar me pegar quando ninguém estiver por perto, e é por isso que vou ficar com sua guarda.

- Minha guarda vai ficar comigo.

- Você sempre dispensou vigilância, por que quer isso agora?

- Porque agora existem Surdos aqui dentro tentando me matar.

- Então você não pretende me ceder proteção?

- Não.

- Nem mesmo um vigia?

- Nem mesmo um vigia. Você não é a guerreira invencível? Defenda-se você mesma.

- Nosso acordo não é unilateral. Eu posso revelar seu segredinho se não colaborar comigo.

- Não pode, não. Camilo te terá trancada num calabouço antes que você tenha contado para dois Auxiliadores. Não se esqueça que o Palácio ainda funciona à base do silêncio.

- Ótimo. Espero que goste de companhia então. – Helena trinca os dentes num sorriso sagaz – Porque eu vou passar o dia inteiro na sua cola.

- O quê?!

- A guarda vai estar com você, então eu vou estar com você. Nem adianta reclamar, aposto que Camilo iria aprovar a aparência do casamento feliz. Você tem muitas coisas políticas para fazer hoje? Espero que envolvam violência. Estou ficando entediada aqui.

Pandora suspira, fechando hermeticamente a túnica larga ao redor de seu corpo e passando a mão sobre o cabelo curto para ajeitá-lo para trás antes de abrir a porta.

- Vai ser um longo dia...

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionWhere stories live. Discover now