8.

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Naquele ano em que cheguei, a situação estava bem pior do que agora. Estava frio fora da túnica preta em que eu me escondia. O ar que eu exalava parecia fumaça de tão espesso, destacado contra o céu escuro. Lembro de apertar os olhos para tentar identificar os detalhes daquela construção gigantesca e azul.

O Templo ainda estava de pé, apesar das paredes com marcas de queimado e das inscrições quase tribais que se estendiam por toda sua lateral. Tentei ler o que diziam as inscrições, mas as letras eram borrões na distância, movendo-se como as ondas do mar, impossíveis de decifrar.

Minha mãe me disse várias vezes que eu precisava de óculos, embora a palavra quase estrangeira nunca formasse qualquer imagem em minha mente. Era apenas um conceito abstrato, um objeto miraculoso que poderia me dar a visão de um pássaro. Eu imaginava como deveriam ser, e como deveriam funcionar, e desejava todas as noites antes de dormir que o tal objeto aparecesse sob meu travesseiro. Eu rezava por isso, sem saber exatamente para quem eu rezava.

Meu pai dizia que rezar era besteira, mas eu continuava rezando, geralmente para o mar.

O mar trazia coisas novas consigo todos os dias. Se havia uma divindade capaz de me trazer óculos, com certeza era o mar.

Minha mãe dizia que eu nunca os teria, porque eram caros, e exigiam exames, e exigiam viagens longas e perigosas até cidades em que provavelmente eu acabaria morta ou bastante machucada. “Acostume seus olhos assim”, ela dizia, “basta apertar um pouco e entortar a cabeça que você consegue ler como qualquer outra pessoa.”

Minha mãe não precisava de óculos, e nunca entenderia que apertar os olhos e entortar a cabeça jamais me deixaria ler como qualquer outra pessoa. Juntar as pontas dos dedos e formar um pequeno círculo às vezes ajudava, mas são poucas as coisas que se pode ver através de um pequeno círculo, e por isso eu desisti da estratégia depois de alguns dias de fascínio.

Camilo dizia que eu não precisava ler muito, e que não deveria me preocupar com isso. Ele dizia que seria até melhor, que ler era uma tarefa exaustiva que apodrece cérebros, prendendo as pessoas em lugares que não existem e fazendo-as esquecer dos problemas reais.

Descobri que, com a iluminação certa, eu poderia ler razoavelmente bem durante algumas dezenas de minutos antes de minha cabeça começar a doer muito forte. Eu não lia muito no Palácio, já que Camilo não tinha nenhum tipo de biblioteca. Quando sentia vontade de ler, eu costumava repassar mentalmente as histórias que eu lia em casa, fingindo enxergar linhas de olhos fechados, e virar páginas com mãos paradas. Era difícil lembrar das histórias completas, mas pelo menos lendo em minha mente eu não tinha dores de cabeça. Ler não era minha maior preocupação, porém.

Os rostos me preocupavam. Numa distância de vinte passos, todos os rostos eram exatamente iguais. Foi por isso que só consegui enxergar o rosto de Helena na primeira noite. Foi só naquela noite que eu vi seus estranhos olhos de duas cores, quando eles estavam já sobre mim, tentando me matar com uma faca.

Eu não consegui ler as palavras pintadas com violência nas paredes azuis esfumaçadas do Templo. E, enquanto tentava, não vi quando um membro dos Surdos pisou à minha frente, bloqueando meu caminho com um revólver apontado para meu nariz.

- Entregue o Sacerdote. – sua voz disse, uma voz grave, distorcida e irreconhecível, assim como o rosto encoberto por uma máscara escura. A máscara tinha um pedaço faltando sobre uma das bochechas, e sua pele amarelada e marcada por manchas de feridas ficava um pouco visível.

Os dois homens que me escoltavam apontaram seus fuzis para aquela pessoa. Camilo riu.

- Você deve ter muita coragem para vir aqui sozinho me enfrentar. Devia ter ficado no seu buraco, rato.

- Não estou sozinho. Entregue o Sacerdote. – a voz repetiu, sem se abalar.

- Ou o quê? – Camilo deu um passo à frente – Você vai matá-lo?

Apertei os olhos e entortei a cabeça para olhar no fundo do cano de metal que apontava para mim. De tão perto, era quase como olhar para o fundo de um poço.

- Qual seria a lógica de matar justamente aquilo que você deseja levar para seu ninho? – Camilo olhou para todos os lados num gesto rápido – Meus homens estão espalhados em pontos estratégicos, e eu sei que você não tem ninguém te dando cobertura. Você veio sozinho, provavelmente desobedecendo às ordens de seus superiores. Um rebelde dentro de um grupo de rebeldes, o ápice da estupidez humana. Quem vai te proteger?

- Não sou covarde como você, Buer. Eu não troco de lado quando estou perdendo. Se eu tiver que matá-lo, eu vou matar.

- Não vai, não. – ele riu novamente, tirando uma arma do bolso e a apontando para o Surdo. O estranho mascarado desviou a arma de mim e apontou para ele - Agradeça que eu não vou te levar comigo para interrogatórios. Uma morte lenta seria o que você merece, mas infelizmente hoje eu não estou com muita paciência.

Sem qualquer aviso, Camilo disparou sua arma, me fazendo pular de susto.

A máscara do Surdo estalou, abrindo-se ao meio assim que ele caiu de costas.

Camilo se abaixou e afastou com os dedos as partes quebradas da máscara. Debaixo dela, o rosto de uma mulher estava ensanguentado, um buraco em sua testa deixando escapar fluídos e pedaços de carne mole.

- É uma pena, Nuit. Você sempre foi uma boa amiga.

Olhei fixamente para o rosto embaçado diante de mim. Camilo havia também chamado minha mãe de amiga, e havia também se apresentado usando aquele nome, Buer. Minha mãe era um dos Surdos. Minha mãe era para ele o mesmo que aquela mulher morta agora era.

Senti meu estômago revirar, um sabor podre prendendo minha língua. Algo dentro de mim me dizia para correr.

Mas eu não corri, porque ao lado daquilo que me dizia para correr havia também outra voz, uma voz que me assegurava que minha mãe jamais teria me deixado ir com ele se não tivesse plena confiança de que era o melhor para mim. Minha mãe jamais faria algo que pudesse me machucar.

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionWhere stories live. Discover now