12.

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- Ela é uma criança! Você precisa mudar seu comportamento! Está me assustando! Está assustando sua filha!

O silêncio permeou os próximos segundos, pesado como um cobertor encharcado, impossível de erguer.

Eu não tive coragem de olhar pela porta da cozinha. Continuei sentada, escondida atrás do batente, ouvindo enquanto minha mãe gritava com a figura quase ausente de meu pai. Ele parecia somente meio vivo, a outra metade já enterrada, sem resistir à facada que não coagulava em seu coração.

- Você acha que sabe o que é estar assustada? – sua voz masculina era potente, apesar de controlada naquele dia. Mesmo sendo sinistro, meu pai só gritava à noite, só em seus pesadelos, com as pessoas do passado, como dizia minha mãe. Ele nunca gritava com nenhuma de nós.

De vez em quando eu pensava que seria melhor que ele gritasse conosco. Ele pareceria mais real, mais vivo, se gritasse. Era muito pior quando ele não gritava, porque nesses momentos ele tinha um tom de voz tão soturno, que daria calafrios aos piores monstros de histórias de terror.

- Eu sei o que é estar assustada, Lúcio. Eu também estive, minha vida inteira. Eu também estive lá com você, mesmo que não se lembre. Eu sempre estive do seu lado. – agora era difícil escutar, suas vozes graves quase abafadas pelas ondas quebrando na orla – E você, quando estará do nosso lado? Quando vai entender que você não é mais um garoto, e sim um homem? Que tem esposa, e filha? Quando vai perceber que você é pai, Lúcio? Quando vai se tornar pai dela de verdade?

Ele disse algo impossível de escutar.

- Eu sei disso. – minha mãe continuou, sua voz mais fina rompendo a barreira das ondas – Também não era o que eu pretendia, mas e então? Até quando vai fechar os olhos para a realidade e se agarrar ao passado?

- Você acha que não estou tentando? – finalmente sua voz se elevou acima dos outros ruídos – Eu estou tentando, todos os dias! Eu estou tentando e estou falhando, como sempre falho! Você acha que eu não queria ser melhor para ela? Para você? Você acha que gosto da pessoa que me tornei? Você acha que eu gosto de olhar para o espelho e ver isto todos os dias?!

Uma nova pausa. Ele devia estar mostrando alguma coisa para ela, provavelmente a orelha dilacerada. Eu não pude enxergar muito bem.

Minha mãe murmurou uma frase mais baixa. Eu só consegui ouvir uma das palavras.

Dantálion.

Era o nome que meu pai costumava chamar durante os pesadelos, quando gritava e perdia o controle. Minha mãe nunca ousava dizer aquele nome, muito menos eu. Mesmo que ninguém tivesse me dito, era claro que aquela era uma palavra proibida. Dizê-la em voz alta seria um pecado. Pronunciar aquele nome poderia despertar todos os monstros, e minha mãe havia acabado de invocá-lo.

E foi a primeira vez que meu pai realmente gritou com uma de nós:

- Nunca mais repita esse nome! Você não tem direito de falar sobre ele! Eu não quero ouvir sobre isso nunca mais! Eu não quero ouvir sobre ele nunca mais! Eu não quero ouvir! Pare com isso! Saia de perto de mim!

Ele já não gritava com ela. Ele gritava sozinho.

Gritava com as ondas, com o ar e com as nuvens. Ele gritava como se estivesse tendo um pesadelo de olhos abertos, as mãos apertadas contra as orelhas, os pés afundando na areia molhada enquanto ele tentava correr.

Ainda gritando, ele correu para longe, quase caindo várias vezes sobre a perna manca. Ele corria como se quisesse esquecer que tinha a perna manca, e como se quisesse esquecer que tinha um corpo, e que estava vivo, e que ele existia, e que o mundo existia. Ele corria como se quisesse escapar do mundo.

Ele não está gritando sozinho, lembro-me de pensar naquela tarde, enquanto via meu pai correr dos demônios que o atormentavam. Ele está gritando com Dantálion.

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionWhere stories live. Discover now