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Sem qualquer acordo verbal, Malphas e Alastor se mantêm na superfície, rondando o local para garantir a segurança do grupo que desce pela entrada subterrânea.

Guiando-as, Lúcio tateia a parede, procurando pelo interruptor, desejando que ele não funcione, ao mesmo tempo em que seu espírito torturador lhe faz ter a fatídica certeza de que o cômodo se acenderá, definitivamente, mostrando-lhe o ambiente que o atormentava em seus pesadelos.

De olhos fechados, ele aciona a alavanca, rezando a quem quer que fosse para que o lugar continuasse escuro. Após o clique, porém, seus olhos são inundados dolorosamente pela claridade.

Tudo está exatamente na mesma posição em que ele havia deixado: a mesa, as prateleiras com o rádio e os livros, os armários com utensílios de cozinha, o sofá de tecido. Todos os móveis estão conservados, apesar de carregarem uma atmosfera intraduzível de antiguidade, como se as décadas de espera os tivessem tornado mais sólidos do que eram originalmente.

E, ao lado do sofá, no canto em que costumavam se sentar para discutir, estavam as duas presenças assombrosamente vivas dos copos cheios de vinho.

Ele caminha para eles, hipnotizado.

O vermelho brilhante havia decaído para uma tonalidade mais espessa, uma parte do líquido tendo evaporado e impregnando o ar com seu aroma adocicado. Os copos, porém, permaneciam quase cheios até o topo.

O subsolo não era apenas um esconderijo no espaço. Era também um esconderijo no tempo.

- Alguém deve ter entrado aqui. – declara Helena, acompanhando a visão de Lúcio até os dois copos.

- Não. Ninguém entrou aqui.

- Então quem colocou esses...

Ela se interrompe, compreendendo aos poucos o significado cruel dos recipientes cheios e voltando-se para acompanhar Pandora em sua atividade de passar os dedos pelos títulos dos livros na estante, abandonando Lúcio em seu abismo pessoal.

- Já leu algum deles? – questiona Helena, tentando ignorar o homem alterado que encarava os copos com os dentes cerrados em dor.

- Um ou outro. São muito raros, pelo visto. Já ouvi falar de alguns, mas não fazia ideia de que ainda existiam cópias deles.

Ela puxa um exemplar de um romance inglês, quase fechando os olhos para conseguir enxergar as palavras em língua estranha, maravilhada de imaginar que alguém da cidade tivesse um dia sido capaz de ler aquilo, ainda mais na época de seu pai.

- Você costuma ler? – pergunta, abandonando as páginas estrangeiras e virando o rosto para Helena.

- Arrumei meia dúzia de livros do depósito dos Surdos, mas nada muito interessante, só manuais e táticas. Você lia bastante?

- Em casa, sim. Não tinha mais nada pra fazer. No Palácio não me deixaram ler, Camilo disse que faria mal para meus olhos.

- Talvez ele tenha razão. Você faz uma careta sinistra quando tenta ler. Como consegue?

- Dá pra aguentar uns dez minutos antes de começar a doer muito. É tempo suficiente pra descobrir alguma coisa.

- Por falar em tempo... – Helena se volta na direção de Lúcio – Você pretende ficar parado aí até quando? Vamos, temos uma missão a cumprir! Precisamos das túnicas, lembra?

Lúcio sacode a cabeça como se despertasse de um longo sono, movendo-se desajeitadamente até um armário lateral, sua perna manca chutando alguns móveis.

- Aqui. – ele abre uma das portas de madeira – Do mesmo jeito de sempre.

Helena passa à frente, tirando o tecido preto do cabide e alisando-o contra a perna boa para testar seu comprimento.

Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionWhere stories live. Discover now