Anos após a fracassada Revolução Surda, a filha de Lúcio é trazida ao Palácio para assumir seu lugar como Sacerdote, numa tentativa de conter a violenta guerra civil entre Surdos e Reformadores.
O problema é que mulheres não podem ser Sacerdotes, e...
Helena está estirada sobre a cama, o rosto apontando para o teto, uma das mãos fumegando com o perfume árido de um cigarro.
- Já disse para não fumar aqui.
- Você mesma fumou aqui, hipócrita.
- Porque você me obrigou.
- Eu não te obriguei. Admita logo que você quis.
Pandora pressiona os dedos sobre a testa. Era apenas a segunda noite que passavam juntas, e já estava enlouquecendo. Como faria para se livrar daquele incômodo?
- Me desculpe por ontem. – Helena repete, num tom nem um pouco arrependido.
- Está pedindo desculpas por tentar me matar?
- Não. – os olhos se voltam para encará-la, cada um a seu tempo – Estou me desculpando por tocar em você.
- Ah, claro. Tudo bem você tentar me matar. O problema mesmo é que você tocou em mim.
- Já disse para parar de tentar ser irônica, soa ridículo em você.
- Quer saber, Helena? Eu não dou a mínima.
Ela retira a túnica pesada, deixando-a cair sobre o chão para revelar as reais formas de seu corpo estreito. Um bocejo sobe involuntariamente até sua boca, o sono de dois dias sem descanso assomando sobre ela.
- Será que vou poder usar minha própria cama hoje? Ou você vai pegar inteira para você de novo?
Helena sorri com ameaça.
- Pensei que nunca mais fosse dormir... Você sabe, eu posso te matar enquanto você dorme...
- Você vai acabar me matando de desgosto uma hora dessas. Não me importo mais.
O corpo da garota ruiva é sacudido com a gargalhada que se espalha pelo quarto inteiro.
- Você fica de mau humor quando está com sono, eu achei o máximo. Melhora muito sua personalidade.
- Cale a boca. E saia da minha cama.
- A cama é nossa, amorzinho. – ela rola para um dos lados, acariciando os dedos provocativamente sobre o lençol do lado agora desocupado – Aposto que você vai adorar isso.
- Do mesmo jeito que adoraria um tiro no estômago.
- Não seja por isso, pode ser arranjado facilmente.
Pandora se deita, encolhendo os braços o máximo que pode para não encostar um milímetro sobre a pele da outra. Depois de um minuto, porém, abre os olhos novamente.
- Por que você me pediu desculpas por me tocar mas não por me matar?
- Ficou curiosa, impostora?
- Não. Só queria entender qual é a lista de prioridades da sua cabeça.
- Isso se chama curiosidade.
Pandora não responde, olhando fixamente para a parede de seu lado.
Helena apoia a cabeça sobre os cotovelos, observando-a com atenção.
- Eu não posso te pedir desculpas por aquilo que está acima de minha escolha, e por isso não posso me desculpar por planejar te matar. Mas tocar em você foi algo... Que eu não devia ter feito. Você não podia se defender.
- E se eu pudesse, estaria tudo bem?
Helena morde os lábios.
- Seu senso moral é completamente distorcido, você sabia?
- Pelo menos eu ainda tenho algum senso moral.
Pandora vira o rosto para ela.
- O que quer dizer com isso?
- Olhe só para você! Se matando de fome por causa de um homem!
- E você está se matando por causa dos Surdos.
Helena solta a cabeça sobre o colchão, resmungando.
- São coisas totalmente diferentes.
- Não são.
- Eu estou lutando pela liberdade, e você?
- Como pode estar lutando pela liberdade, se não é livre para escolher o que quer?
- Eu tenho escolha.
- Você acabou de dizer que não teve.
- Cale a boca, impostora. Você nunca entenderia. Eles me salvaram, eu devo minha vida a eles.
- Então não me critique por dever minha vida ao Palácio.
- Você está passando fome!
- E você se ofereceu para se casar com um estranho.
- E você aceitou se casar com uma estranha.
Pandora vira as costas para ela, fechando os olhos.
- Admita logo que somos iguais, Helena. Você está tão ferrada quanto eu.
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