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Ela caminha lentamente para fora, analisando os rostos que a observam. Cada olhar faz sua mente paralisar pelo tempo que parece interminável. Ele pode estar em qualquer lugar... Ele pode ser qualquer um... Ele pode ter qualquer rosto... Ele pode estar em qualquer lugar...

Camilo a espera no local costumeiro, ao lado do Púlpito. Quando o Sacerdote se aproxima, ele abaixa o rosto, colocando a orelha perto de seus lábios.

Pandora nada diz, os lábios tremendo incontroláveis enquanto o Auxiliador sorri maldosamente, seus olhos fixos nos dela, sua tranquilidade exalando a ameaça silenciosa.

Por que não tinha percebido isso antes? Se Camilo a queria morta, não faria dentro do Palácio, onde poderia levantar suspeitas contra ele. Se ele a quisesse morta, ele faria de um jeito que não deixaria margens para dúvidas. Ele faria em público, diante de todos, eximindo-se de qualquer responsabilidade e jogando a culpa para os Surdos. Ele faria numa ocasião propícia, e que ocasião seria mais propícia que a Audição? Com tantos soldados da guarda girando os fuzis a torto e a direito, não seria difícil deixar uma bala escapar. O atirador já teria desaparecido no meio da multidão caótica que estaria procurando o assassino entre eles, e não no alto do Palácio.

Camilo toca a mão em seu ombro, puxando-a para perto de si. Erguendo o rosto para a multidão, ele profere, sua voz espalhando-se na distância:

- Nosso Sacerdote, através de mim, vos comunica a mensagem de nossa sagrada Voz para este dia especial.

Seus dedos se cravam no ombro de Pandora, doendo.

- A Voz nos alerta para mudanças que estão sendo planejadas pelos céus. A Restauração deve prosseguir, o Palácio deve retomar seu poder original, para que assim possamos mais uma vez encontrar a paz e a prosperidade de nossa cidade, com mais força do que antes! É o início de uma nova era!

Os olhos de Pandora captam o movimento sutil de um dos soldados da guarda posicionado acima do palanque baixando seu fuzil. Ela o encara com espanto enquanto o homem sem rosto mira o cano de sua arma diretamente para ela.

Seu coração estala dentro do peito com um golpe doloroso, e então congela. Os dedos de Camilo a mantêm firme na posição.

- A Voz será ouvida até mesmo pelos Surdos. – ele murmura em tom sombrio, virando os olhos de falcão uma última vez para ela, sorrindo.

O som do disparo ecoa. O corpo de Pandora se lança involuntariamente para trás, e ela fecha os olhos, aguardando pela dor.

Mas ao invés da dor, recebe apenas os gritos.

A multidão se dispersa em uma corrida louca, os soldados da guarda apontando os canos de seus fuzis para todos os lados, buscando o atirador que os derruba, um a um.

Dois ou três já fazem companhia para o corpo caído do homem que há poucos segundos mirava o peito de Pandora. Os tiros parecem brotar do nada em meio ao ar, sugando os soldados para o chão antes que possam entender o que se passa.

Camilo prende os dedos com força ao redor de seu pulso, puxando-a consigo para as escadas laterais.

Ela tenta se libertar sacudindo o braço, retorcendo o corpo. Quase tem o braço quebrado quando ele a puxa com violência, arrastando-a pelo chão do palanque. Ela chuta, inutilmente, sua pele queimando contra o solo. Se ele tiver sucesso em tirá-la dali, nada o impedirá de executá-la usando apenas as mãos, e ter o pescoço dobrado ao meio parece muito pior que levar um tiro.

Quando já está cedendo ao desespero, o milagre acontece.

O milagre chega na forma de um projétil que entra na coxa de Camilo, o impacto e a dor o derrubando com o rosto sobre as pedras, sua mão soltando a garota para apertar o buraco que já transborda com sangue.

Ignorando os tiros que ricocheteiam de todos os lados, ela corre, caindo do topo do palanque e batendo o peito contra o último degrau, arrastando-se com os braços até conseguir se reerguer e entrar no emaranhado de pessoas que correm desordenadamente.

Algumas caem, atingidas por balas e estilhaços. Outras tropeçam e desaparecem sob dezenas de sapatos para não se levantarem mais. Ela os ignora. Ignora a dor e os tiros e o pânico e apenas continua a correr, abrindo caminho entre os vãos, esbarrando e derrubando outros, sendo derrubada algumas vezes e enganchando as unhas em pernas alheias para novamente se colocar de pé antes que seja tarde.

De início, sua mente a havia forçado a correr para a multidão, acreditando que estaria protegida pela barreira de corpos que cairiam ao invés do seu. Em poucos metros, porém, o erro de sua decisão se torna evidente. Não há onde se proteger, os atiradores ocupam posições mais altas, e suas roupas sacerdotais a destacam dos demais. Além disso, a barreira humana que deveria protegê-la a faz demorar, bloqueando sua passagem, apertando seu corpo por vários lados, esmagando suas articulações e ameaçando quebrar seus ossos no meio de pessoas maiores e mais fortes.

Um corredor livre se abre em seu campo de visão. Ela chuta a pessoa à sua frente, passando por cima de seu corpo minúsculo para correr.

Seus olhos se enchem de lágrimas ao ouvir o grito de dor da criança que havia acabado de pisotear, uma criança que não devia ter mais de seis anos de idade, e que provavelmente teria sequelas graves, se não morresse, depois de levar um chute no peito e ter a cabeça pisada.

Pandora volta o rosto para trás. A criança já não é mais visível sob uma cortina de pés que a esmagam.

A guerra é isto, a voz de Helena sussurra em sua mente. A guerra te obriga a escolher um lado. Você fará o que tiver que fazer para continuar viva.

Tentando segurar o descontrole de suas emoções, dispara pelo espaço vazio, finalmente saindo da massa de corpos para sentir o vento gelado da floresta soprar em sua pele. As árvores a cobrem, os gritos de dor e pânico se perdendo em ruídos indistinguíveis.

Lutando contra os instintos, Pandora desamarra a túnica, atirando-a no rio que corre ao seu lado e penetrando o clima frio da floresta vestida apenas com as roupas de baixo, que a deixam exposta da cintura para cima. Entre ser vista nua e passar frio ou ser um alvo fácil numa paisagem verde-escura, é preferível ficar assim mesmo. Uma túnica branca e dourada que a faz tropeçar não parece ser uma roupa adequada para alguém que está correndo por sua vida no meio da mata. Se a noite chegar antes que encontre abrigo, porém, a situação se voltará contra ela.

Tarde demais, pensa, ouvindo o ronco do rio cada vez mais distante. Se sobreviver até a noite, já será muita sorte para se importar com o frio. A preocupação a abandona, a visão da criança esmagada sob seus pés retornando enquanto corre.

Ela havia jurado que jamais seria como seu pai. Jamais seria um monstro. Jamais machucaria um inocente para se proteger. Mas, aparentemente, os genes assassinos que havia herdado dele se manifestaram assim que tiveram a oportunidade.

Sem qualquer hesitação...

Controlando-se ao máximo, ela corre, aproximando-se da fronteira e deixando para trás o seu povo agonizante.

Controlando-se ao máximo, ela corre, aproximando-se da fronteira e deixando para trás o seu povo agonizante

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Pandora (COMPLETO) - Livro III - Trilogia DantálionWhere stories live. Discover now